Sonoridades no Cinema Brasileiro: Guile Martins e o som de “A Cidade é Uma Só?”
Entrevista com Guile Martins, responsável pelo desenho de som de “A Cidade é Uma Só” (Adirley Queirós, 2011).
Guilherme Farkas: Como você entrou no “A cidade é uma só” ? Você tem uma relação anterior com o Adirley?
Guile Martins: Conheci o Adirley em 2006, durante um festival de cinema em Florianópolis. Nossos curtas estavam sendo exibidos, ele com “RAP – O canto da Ceilândia” e eu com o “Sobre a Maré”. Conversamos muito, mas acho que mais sobre futebol do que cinema. Nos reencontramos em 2009, no festival de Brasília, eu estava lá apresentando o documentário “Tarabatara”, no qual fiz som direto e edição de som. Nesse tempo fui conhecer a ceilândia, tomar banho de cachoeira em águas lindas de Goiás, algo que me alegrou muito, arejou um pouco a angustia de estar em Brasília, no plano piloto, um lugar desconhecido e inóspito pra mim. Na Ceilândia ouvi os carros de som, os vendedores da feira, gente andando nas ruas, jogos de futebol em cada esquina, enfim, uma paisagem humana e sonora muito diferente do plano piloto e do circuito do festival de cinema. Foi aí que assisti o “Dias de Greve”, na casa do Adirley e conversamos mais sobre som, como aproveitar os sons da Ceilândia e de outras quebradas, sem recorrer ao recurso de “som de tiro e sirenes ao longe”, que tanto o incomodava enquanto proposta estética. Falamos sobre os sons que desaparecem com o tempo, o amolador de facas, um vendedor de biju…
GF: Adirley ja tinha propostas de som para o filme antes de começarem as filmagens?
GM: Acho que o filme já nasce de uma proposta ou um disparo sonoro: o jingle, o carro de som do dildu, a propaganda boca a boca – tudo ali é som, quer falar, falha, gagueja, reinventa. O próprio fluxo de fala do Dilmar (Dildu) é algo que não se restringe ao significado de cada palavra que ele está dizendo, mas se mistura, forma ritmo, cadência, quebra, requebra, faz água corrente. Outras cenas, extremamente sonoras, não estavam previstas mas aconteceram, como o encontro com a caravana do PT, as buzinas do carro, aquela massa ruidosa gigante e opressora perto da artesania sonora do carro de som instável de Dildu e Zé Bigode. O Adirley também sabia que queria muita rádio para o carro do Zé Bigode, tocando musica brega. Também pensava em sons de vizinhança, alguém ouvindo uma musica envagélica, por exemplo, quando entramos na casa do Marquim. A ideia era povoar o som, construir essas vizinhanças para tornar audíveis as multidões da ceilândia, outras pessoas que não aparecem no filme mas ocupam a paisagem sonora, conectam-se a ela.
GF: Qual foi seu principal trabalho no filme? Nos créditos você aparece somente como “finalização de som”.
GM: O trabalho foi grande, intenso e rápido, pois o prazo estava apertado. Lembro de ter virado algumas noites num estúdio em Brasília, para conseguir terminar a edição a tempo da mixagem, que foi feita em SP. Alem de escutar todo som direto, mesmo das cenas que não foram utilizadas pela montagem, para encontrar sonoridades que pudessem servir, vasculhei também meu arquivo pessoal, procurando ambientes de feira, rádio, obras, motores de carro. Lembro que tivemos que sonorizar todos os carros que passam em alta velocidade, cruzando o quadro, enquanto Zé Bigode dirige. Como ele está o tempo todo dirigindo, imagino que isso foi bem trabalhoso. O som direto do carro do Zé Bigode já era em si, uma sinfonia: peças soltas que vibravam, papéis voando com o vento, motor amaciado roncando… O Adirley e eu percebemos muito cedo que a força do filme estava no som direto, e que a edição de som deveria potencializar essa expressividade, equalizando um pouco e acrescentando sons que não brigassem nem encobrissem o som direto. Havia também os matérias de arquivo de rádio, o discurso de JK, tudo isso com uma sonoridade própria, com um chiado histórico, por assim dizer. Tive bastante trabalho em amalgamar essa sonoridade com as outras rádios, criando transições com sons de estática para passar de uma textura a outra.
GF: O filme tem um pouco de tentar recuperar, na pós-produção, algumas coisas, garantir inteligibilidade de alguns planos e fazer uma edição de som e mixagem que o sustente?
GM: No geral o som direto do filme estava bom, algumas vezes com o entorno mais barulhento, feira, rodoviária, etc. Mas todo esse ruído era totalmente compreensível e deveria ser incorporado ao filme. Alguns fluxos de fala de Dilmar são realmente incompreensíveis, não por um problema de som direto, mas pela maneira particular com que ele articula seu discurso, emendando uma palavra na outra, trocando os sentidos, misturando gíria do norte com canto de rap. Essa fala, às vezes incompreensível, é também seu manifesto, sua metralhadora vocal. Sim, tentamos recuperar algumas coisas, mas no final das contas, acho que a edição de som e a mixagem estavam mais preocupadas em criar um ritmo ao filme, entendendo os momentos em que ele deveria ter maior pressão sonora, e os momentos de respiro, do que apenas recuperar o que não estava inteligível.
GF: Em alguns momentos, o filme flerta com uma estética de um som hiper-realista, em que você tem uma condição de escuta bastante amplificada, todos os eventos soam, produzem sonoridades que num modo de produção documental (não que eu afirme que o filme seja um documentário, muito pelo contrário), muito dificilmente seriam gravados. Queria saber se você concorda e (caso positivo) se foi uma sugestão do Adirley.
GM: Na verdade, quando estou editando o som de um filme eu tento trazer à tona tudo que possa soar, construindo uma condição de escuta hiper-realista mesmo. Claro que alguns filmes permitem vôos maiores do que outros, e acho que “A cidade é uma só?” brinca com a ficção, por isso resolvi trazer um pouco minha experiência de editar ficção para o filme. Depois o Adirley ouviu e foi cortando algumas coisas, abaixando outras. Meu processo costuma ser assim, sempre prefiro tirar sons ao longo do trabalho, de acordo com ideia do diretor. Se você achou hiper-realista, deveria ouvir a primeira versão!
GF: Em entrevista que realizei com o Fernando Henna e o Daniel Turini recentemente, eles disseram que o filme tem uma edição de som “super esperta”. Disse que você foi colecionando, no som direto, um banco enorme de sonoridades. Sonoridades específicas do local onde vocês estavam. Sons que muito dificilmente seria encontrados em bancos de som. Como seu deu esse processo? Existiu de fato essa catalogalogação do som direto? Como era essa metodologia na prática? Isso foi pensado antes? Era gravado em sincronia com a imagem? Como se deu em termos de produção e de som direto?
GM: Tenho esse hábito de colecionar sons. Raramente apago o que gravo, desde viagens com o gravador a tira colo até som direto dos filmes que faço e experiências com sons da natureza processados em sintetizador. Já faz uns anos que venho construindo essa fonoteca, separando e catalogando os sons com critérios bem particulares. Tem a pasta de trem, feira, musicalidades, sons aquosos, etc… Alguns desses sons foram utilizados no filme do Adirley, mas a maioria veio mesmo do som direto. O Francisco Craesmeyer, que fez o som direto de todos os filmes do Adirley (aliás, ele é um cara que você poderia entrevistar) tem a preocupação de gravar sons independentes da imagem, isto é, sair por aí com o gravador captando ambientes, pois tudo isso faz parte do universo do filme. Na cidade é uma só, devido a correria das gravações, ele não teve tanto de tempo de fazer isso, no entanto, muita coisa que foi rejeitada pela montagem foi retomada durante a edição de som. A gente ficou ouvindo outros planos que não entraram no filme, atentando para o seu potencial sonoro. Coisas interessantes foram encontradas por aí… Às vezes é coisa pequena, tipo uma motocicleta velha passando debaixo de um viaduto, um metro ao longe, enfim, trabalho de formiguinha. Esses sons pequenos, que realmente não podem ser encontrados em bancos de som internacionais, em minha opinião, fazem toda diferença no resultado final. Dão autenticidade e frescor à paisagem sonora do filme.
GF: Henna e Turini levantaram um questão interessante que é a de um certo aspecto de guerrilha no filme. De incorporar muitas coisas, de muita sonoridade do lugar mesmo. E por se tratar de um primeiro longa e de uma personalidade que é o Adirley, como ele encarava essas sonoridades? O que era incorporado e o que ele queria uma outra construção? O som do filme me parece de uma construção extremamente íntegra e controlada. No sentido de que sinto pouco daquele “descontrole” oriundo do som direto.
GM: Tentamos dar alguma consistência ao caos que é fazer som direto ao céu aberto, em feiras, rodoviárias, carreatas… No entanto, era inevitável e até bem vindo que sons não previstos invadissem a diegese do filme, passando a fazer parte do documentário. Por exemplo quando Zé Bigode está no alto de um prédio observando as novas construções da especulação imobiliária e uma motoca passa bem ao longe, com escapamento furado, e vai se afastando até o silêncio. Esse tipo de som, com essa perspectiva é muito difícil de se encontrar nos arquivos, faz parte do ‘descontrole’ do som direto e ficou no filme. Para esse sequência, nós construímos sons de obra, marretas, picaretas, enfim, ruídos que reforçassem essa ideia da cidade em constante construção, da valorização súbita dos terrenos, da especulação imobiliária invadindo a ceilândia. Quando Dilmar está, à noite, olhando as ruas em silêncio, após um tempo de vazio, surge um carro, rasgando, atravessando o quadro em altíssima velocidade, com uma música grave estrondando em efeito Doppler. A rua, em questão, tinha vincos no asfalto, o que emitiu um som “crespo” de pneu raspando, impossível de se reproduzir ou de se conceber num estúdio. Na verdade, essas invasões do ‘mundo real’ no som direto acabaram inspirando as outras construções, de maneira que sonoridades ‘documentadas’ e ‘ficcionadas’ entravam num estado de contaminação recíproca, uma sendo influenciada e afetada pela outra. Talvez por isso a impressão de construção íntegra e controlada… Nos momentos de fala procuramos respeitar totalmente o que havia sido gravado, sem acrescentar qualquer ruído que pudesse distrair o dialogo. Como o filme tem muitas sequencias sem fala, aproveitamos para potencializar as construções nesses momentos.
GF: Como o Adirley lidou com a questão da música? Ele optou por ser sempre diegética? Como vocês pensaram o registros das músicas? Playback, som direto, os jingles.
GM: A música é sempre diegética. Mesmo as que tocam no rádio foram gravadas a partir de um alto-falante pequeno, cheio de freqüências médias. Lembro-me que a gente queria colocar uma musica evangélica, como que tocando num vizinho. O que fizemos foi baixar uma musica do youtube e reproduzi-la no laptop, gravando-a ao longe, através das paredes. Parece que funcionou. Acreditamos que o som pode funcionar como sonda, isto é, evidenciar as propriedades do espaço pelo qual se propaga, por isso, uma musica ressoando no ambiente nos interessa, nesse filme, mais do que aquela que surge limpa, sem ruídos de fundo e acaba mascarando os outros sons do filme.
GF: Acredito que o filme está num local bastante interessante para o som que é o limbo entre a ficção e o documentário. Você concorda? Se sim, como vê nessa caso a construção do som se comparada a um filme clássico-narrativo ou a um documentário institucional “talking heads”?
GM: Esse limbo ou limiar é a zona de tensão do filme, que dispara toda inventividade do som, da montagem, roteiro, atuação… Especificamente, no caso do som, foi essa zona de indeterminação, entre ficção e documentário, que permitiu construções mais musicais, passagens rítmicas de rádio, construção de ambientes onde se ouve longe… Quanto mais fala, do tipo ‘talking heads’ menor o espaço para a construção sonora dos ambientes, qualquer ruído acrescentado acaba por atrapalhar o dialogo e não é bem vindo. Como o filme do Adirley tem muitas cenas de tempo dilatado, com diálogos pontuais, pude construir um entorno sonoro, pensar os ambientes como se faz numa ficção. No entanto, o fato de ser um documentário nos trazia sempre de volta ao chão, isto é, as construções não poderiam se sobrepor ao som direto, mas deveriam se orquestrar com ele, como numa espécie de trança.
GF: Como você se aproximou do universo do som no cinema?
GM: Durante a faculdade, tive dois professores de som incríveis. O Eduardo Santos Mendes e João Godoy, que davam aula juntos e se complementavam em muita coisa. O João tinha mais experiência de som direto, documentarista, sabia gravar e dar valor aos sons da cena, a natureza da nossa escuta, um ouvido muito criterioso e atento. Eduardo nos desvendou as construções sonoras, suas camadas, as possibilidades de se combinar dois sons para formar um terceiro, a potencia narrativa dos ruídos… A partir daí, fui virando noites no estúdio da faculdade, editando o som dos curtas dos colegas e nunca mais parei…
GF: Como se aproximou do universo do som direto e da edição de som?
GM: Acho que já está respondido acima. Só vale ressaltar que o fato de fazer as duas coisas (som direto e edição de som) é fundamental no meu trabalho. Capto coisas que me dão idéias para as edições, quando a sonoridade da vida cotidiana se impõe e parece avisar que pode ser muito mais criativa e espontânea que qualquer construção. Foi por causa do som direto que me lancei na empreitada de construir um acervo sonoro, a fonoteca. Já a experiência de editar som me tranqüiliza quando estou fazendo som direto, sei que alguns problemas realmente podem ser resolvidos na pós, não fico tão louco com certas complicações técnicas que surgem. Somente com algumas, pois outras, realmente me enlouquecem… O som direto acaba funcionando como a coleta de material, a expedição ao incerto: uma caverna, a beira de um rio, o topo de um prédio, e a edição de som é o laboratório onde esses materiais serão recombinados, modificados, distorcidos, depurados, infinitamente… Um som nunca se esgota. Diferente da imagem, um mesmo som pode ser re-utilizado em diversos filmes, desde que seja recombinado com outros, fragmentado, amalgamado em uma nova composição, ganhando novo sentido.
GF: Você teve uma formação em som de cinema?
GM: Sim. Uma formação teórica e uma prática, trabalhando primeiro como microfonista, que colocou a teoria pra suar.
GF: Como se dá sua relação com os diretores na fase de pré-produção dos filmes?
GM: Isso depende. Muitas vezes recebo o filme já pronto, ou quase pronto, o que limita um pouco a edição de som, que acaba apenas por preencher as lacunas ao invés de criar lacunas, desenvolver espaços, jogar com a imagem. Gosto quando a relação começa no roteiro, quando as possibilidades sonoras do filme são ao menos esboçadas, imaginadas antes das filmagens. Mesmo que tudo mude durante as gravações, depois na montagem, o som do filme já teve tempo de ir amadurecendo, mudando junto, já tinha uma existência embrionária. Gosto quando há conversas com o técnico de som e quando posso acompanhar a montagem, acho que isso é o ideal para qualquer editor de som.
GF: O som direto tem papel criativo numa construção cinematográfica? De que forma isso ocorre?
GM: Fundamental. Em primeiro lugar, quanto melhor o som direto mais espaço existe para a construção sonora na pós. Quando o som direto está comprometido, saturado o excessivamente ruidoso, não sobra espaço para acrescentar nada, pois qualquer som novo polui, cria sujeira. Alem disso, é o som direto que aponta direções para a criação na pós. Muitas vezes recebo uma cena em que o som direto é tão lindo que não ouso mexer em nada, ou quase nada… Acontece muitas vezes que, durante a gravação do som direto, surjam algumas idéias que modificam o roteiro, ou a montagem… Por exemplo, esses dias estava gravando um filme nas cavernas, em Terra Ronca, quando o ator resolveu dar um grito na boca da caverna enquanto a equipe almoçava. O grito ecoou tantas vezes que todos pararam de comer. Comentei com o diretor e decidimos gravar esse grito, que não estava previsto no roteiro. Temos de estar atentos, não somente ao som de cada cena, mas ao entorno, a esse universo que também faz parte do filme e está o tempo todo querendo entrar, forçando sua passagem para dentro do filme, pois o som não respeita tanto as barreiras, os limites do enquadramento. O som vaza, escorre, invade… Muitos técnicos de som direto acabam temendo essa invasão, tentando barrar qualquer tipo de ruído, isolar as cenas como num estúdio, e fecham seus ouvidos para sons que poderiam trazer idéias, sopros de vento, renovar a narrativa do filme. Claro que um técnico de som precisa limpar o máximo possível o dialogo, isolar do fundo, tratar acusticamente os ambientes, mas deve também estar de ouvidos abertos ao fora, percebendo o que está a sua volta. Esta é a principal limitação de alguns técnicos de som, que não encaram seu trabalho como algo criativo, mas apenas como um captador de diálogos, acabam subestimando o próprio ofício.
GF: Como os diretores se relacionam com o som enquanto elemento de contribuição à narrativa?
GM: Aprendo muito com os diretores com quem trabalho. Cada pessoa tem uma escuta diferente, coisas que para mim estão soando bem incomodam certos diretores e vice-versa, portanto, sempre há troca no processo de construção do som. Não lembro de uma única vez em que mostrei a edição de som para um diretor e ele disse: está tudo ótimo. Vamos mixar! Sempre levantam alguma questão, sugerem uma modificação que eu não fui capaz de pensar, afinal, conhecem ou devem conhecer o filme melhor do que ninguém. Claro que existem diretores mais ligados em som do que outros, mas os bons, no fundo, sempre são capazes de escutar seu filme, ali no fundo do ouvido, sentem quando está fora de tom ou quando as coisas se encaixam. Apesar disso, ainda acho que falta formação sonora para muitos diretores. Muitos desprezam o som direto, ou acham que ele está reduzido a captar falas, outros nos procuram apenas para resolver os pepinos, apagar incêndios… Subestimam ainda a potencia expressiva do som, esquecem-se que, enquanto a imagem está plana, em 2D na tela, o som ocupa todo espaço, envolve o espectador, toca os pêlos do ouvido…
March 30th, 2015 at 20:23
Que bela entrevista, sobre um belo trabalho!
Uma inspiração…
parabéns, Guile e Guilherme e Adirley!
quero muito ver o filme… agora ainda mais…!
September 8th, 2015 at 18:33
Que legal Kira!
O artigo será publicado em dezembro desse ano na revista LAIKA, da ECAUSP. Vou ficar feliz se vc quiser ler!