Sonoridades no Cinema Brasileiro: Danilo Carvalho e o som de “Vilas Volantes, o verbo contra o vento” – PARTE I
Continuando com a publicação de pesquisa sobre sonoridades no cinema brasileiro contemporâneo, segue a entrevista realizada com Danilo Carvalho, em sua casa na cidade de Parnaíba (PI).
A conversa realizada com Danilo teve como eixo central, assim como as do demais entrevistados na pesquisa, um filme. No caso de Danilo, o filme é “Vilas Volantes, o verbo contra o vento” (Alexandre Veras, 2005). Danilo realizou a captação de som junto com Lênio Oliveira, e também fez a edição de som e mixagem. Porém a conversa com Danilo abordou outros lados da pratica sonora, menos retido em questões metodológicas ou técnicas. Danilo fala sobre a realização de filmes, suas experiências de vida e como tudo isso se desdobra no fazer som para cinema.
Danilo também é realizador e diretor de filmes e foi um dos fundadores do coletivo Alumbramento. É parceiro de longa data de Ivo Lopes Araújo e Alexandre Veras.
Parte I) Aproximações e influências com som e música
Guilherme Farkas: Como se deu a sua aproximação com o cinema?
Danilo Carvalho: Minha aproximação com o cinema começou na verdade pela música. Eu sempre toquei, desde moleque, com nove anos já ganhei um violão, fui tocando, ganhei guitarra, tive banda no Piauí, morei até vinte anos no Piauí, em Parnaíba. E vou para Fortaleza (CE) porque tinha um primo/tio chamado Leo Gandelman, que é do Rio de Janeiro, casado com minha prima, que morava em New Jersey, EUA e me convidou para morar lá (em New Jersey – EUA). Fui então para Fortaleza só como ponte mesmo, para tirar passaporte e ir morar e estudar em New Jersey. Mas nesse meio termo ele separa da esposa dele e eu acabo ficando por Fortaleza, morando lá, e presto vestibular para curso de Música, já estava fazendo isso mesmo. E com essa história da música, sempre curti muito cinema, fotografo desde criança, meu avô me deu uma Yashika-A [1] dele, escrevia atrás das fotos. Então desde moleque tenho essa coisa com a fotografia também e em Parnaíba não tinha cinema assim para ver. Cinema era algo meio impossível, coisa de “americano”, muito longe. Nem pensava na possibilidade de cinema porque era algo muito distante mesmo, a música era algo mais fácil, mais rápido. Toquei com vários músicos, toquei quase 5 anos com Belchior, que hoje está sumidão no Brasil, toquei com Monasés, isso depois da minha entrada na música em Fortaleza, depois de uns quatro anos. Então fui fazer faculdade de música lá. E nesse momento da faculdade de música eu vou conhecendo várias figuras em Fortaleza, era uma mutação, isso era em 1994, e nessa época estava mudando o cinema em Fortaleza… Tinha umas figuras antigas do cinema de lá como o Rosemberg Cariry, Wolney Oliveira, tinham essas pessoas e poucas pessoas mais novas fazendo cinema, não tinha nenhuma escola, não tinha nada. Então a proximidade que a gente tinha com cinema era no set e algum amigo que chamava a gente para ver algum pedaço de um filme que era completamente diferente das estruturas de se filmar hoje e eu fui me encantando um pouco por aquilo. E essa coisa de gravar, eu gravei a minha primeira banda em Fortaleza, o Realejo Quartet, uma banda que misturava Jazz com música eletrônica e música brasileira. A gente gravou em casa esse disco. E essa coisa de gravar, ter contato com gravação, comecei a ficar muito entusiasmado com essa coisa de gravar. Pintou um curta-metragem de um amigo para fazer a captação de som e fui fazer sem saber de nada, só no feeling da música e daquilo que já tinha percebido dos set’s que via. Fui fazer, funcionou e eu curti muito. Um dia fui convidado por uma amiga, Margarita Hernandez, uma cubana, para fazer o desenho sonoro de um filme dela sem ter feito absolutamente nada, só pelas minhas ideias e minhas conversas com ela sobre som, sobre questões da paisagem sonora que envolvia aquele material e e tal. Ela tinha pego na Cinemateca Brasileira (São Paulo) muitas imagens de arquivo da época do Ciclo da Borracha no Acre onde muitos cearenses foram. Vou então fazer esse trabalho com ela de reconstituição de sons, pesquisar sons. Foi um trabalho que eu adorei depois. Ela chegou e disse “para de fazer um monte de coisa de que faz, você fotografa aqui, toca acolá, para com isso. Você tem muito jeito pro som no cinema, vai no som, não tem ninguém no som para fazer e pensar bem. Não tem ninguém aqui no Ceará. Vamos nessa que eu vou te ajudar”. Ai ela me deu um microfone, me ajudou a comprar um gravador, me ajudou a fazer um monte de coisa para eu ir e fazer para ela. Começamos então a trabalhar juntos e logo em seguida veio um longa-metragem. Ela já era uma figura cubana, tinha trabalhado em muitas produções, morava em Fortaleza. Então ela me coloca como assistente do Zé Louzeiro (José Moreau Louzeiro) que é um grande técnico de som carioca, fez muitos filmes, eu acho que ele estava fazendo inclusive o centésimo filme dele comigo. Eu fazendo meu primeiro e ele fazendo o centésimo. Eu fui ser segundo assistente dele. Foi minha primeira experiência com som de set mesmo, valendo, com preocupação e responsabilidade nas costas foi naquele momento. Era um longa-metragem, ficção, uma ficção clássica, com toda aquela estrutura de cinemão de fechar um monte de rua, de isolar tudo, de cobrir as casas com manta de som de três a quatro horas para se preparar um lugar para gravar. Coisa que ninguém faz atualmente. Era uma loucura, eu estava dentro de um set clássico, meu primeiro set valendo. Aí eu fui pesquisar tudo isso, por que? por que? por que? tudo era por que? No começo ele (Zé Louzeiro) ficou um pouco irritado mas depois entendeu e me ajudou. Viu que eu estava ali para estagiar, de segundo, para aprender e vamos nessa. E eu com muito feeling, já tinha feito algumas coisas, e com essa coisa da captação da música me ajudou muito. E rapidamente eu passo de segundo para primeiro, porque os microfones que eu fazia eram melhores que os microfones dos primeiros assistentes dele. Vinha com ideias boas, passei a ser primeiro (assistente). A segunda parte do filme foi em Cuba e ele tinha que fazer com microfonista cubano, que era um pouco da política do filme, trabalhar com assistentes locais. Mas como já tinham mais cubanos em outras áreas, ele pediu para produção me levar no lugar de ter um cubano. Porque ele já estava confiando tanto no meu trabalho, nos meus microfones, como eu tratava os lapelas, escondia. Então eu vou para Cuba, filmo com ele, faço um trabalho bem feito com ele lá. Teve um dia que ele passou mal e eu tive que rodar. A diretora já estava confiando tanto em mim que ela deixou eu rodar: “essa sequência não é muito difícil, você pode rodar”. Então eu sai de segundo assistente e no final do filme rodo uma diária. Achei isso muito foda e quando a gente terminou esse longa o Louzeiro me deu umas dicas e já comprei meu equipamento. Foi o único filme que eu fiz assim no sentido de bastante aprendizado. Depois eu fiz assistência para outras pessoas, trabalhei, fiz um curso. Mas esse foi um primeiro filme assim que virou uma experiência de realização. Depois eu conheço o Nicolas Hallet que é um belga, que eu faço um curso com ele que abriu a minha vida. É um cara apaixonado pelo som e que me fez…
G.F.: O Nicolas Hallet é um realizador, técnico de som?
D.C.: É formado em cinema, em Nova Iorque, é belga e tem especialização em som e adora som, trabalha com som, adora a cultura brasileira, é muito mais brasileiro do que um monte de brasileiro que eu conheço. Morou na Bahia muitos anos e hoje ele mora em Olinda (PE). É um grande amigo meu, meu grande parceiro de som no Brasil é ele. Eu fiz um curso com ele, mas não fui admitido no momento da minha inscrição porque eu não sei por que cargas d’agua o tipo de seleção desse curso é esquisitíssimo. Eu fui conversar com o diretor do Instituto Dragão do Mar (Fortaleza, CE) porque eu não fui selecionado se eu era a única pessoa no Ceará interessada no curso… Ai o diretor disse que tinha que dividir essas informações que tinham pessoas de outras áreas que precisavam disso. Eu disse que está errado, que tinha que formar alguém que estava trabalhando com som, essas informações são cruciais para uma pessoa que está se formando em som no Ceará e etc. Eles não me admitiram e então eu fiquei na porta do curso esperando o professor. Ai chega o Nicolas, eu me apresentei para ele, disse que eu precisava do curso, das informações mas que os diretores do Instituto não me admitiram no curso. Ele ficou impressionado e disse que se alguém se atrasasse um minuto eu poderia participar do curso. Ai quando deu horário, claro que muitas pessoas se atrasaram e ele me colocou para dentro. Então no começo da aula, chega o diretor para dar as boas vindas para os alunos e me vê lá na primeira fileira. Olha para mim espantado e antes de eu falar qualquer coisa, o Nicolas fala que eu não estou inscrito mas que preciso muito do curso, das informações e talvez que eu seja a pessoa que mais precise do curso, que eu era o convidado especial dele. Com três dias de curso eu já tirei Nicolas do hotel e ele foi para minha casa, viramos amigos. Ai no quarto dia eu já era o monitor do curso.
G.F.: Que ano foi isso?
D.C.: 1995… Isso em Fortaleza. Ele traz para gente tudo, coloca Nagra [2], DAT [3], gravador de fita, K7. Para gente gravar em todos a mesma coisa, ouvir as texturas, tinham uns dez headphones para ouvir. Ai eu fiz câmera também, 35mm… Enfim, foi um curso que a gente soldou cabo, conversou de impedância, de ruídos, de eixo, de tudo de som! Foi muito legal para mim. Eu vendi meu carro para Nicolas, que ele adorou, uma Saveiro velinha que tinha. Ele falou que compraria meu carro se eu fosse para Bahia com ele para levar os equipamentos. Fomos então, botamos uma lona no carro e fomos pra lá. E logo eu fui ser assistente dele em alguns outros filmes, ele já me pegou logo. Conheci Isabela Cribari em Recife que abriu uma porta, comecei a fazer filmes lá e essa foi minha entrada. Comecei a fazer na Bahia e em Pernambuco e os caras de Fortaleza começaram a me chamar também. Foi essa minha entrada no som…
G.F.: Você pertence a uma certa intimidade da música, esse universo é caro para você? Como isso influência seu trabalho no cinema, como se dá essa relação?
D.C.: Eu nunca tive a pretensão de ser um grande músico super reconhecido ou um virtuose em algum instrumento. Sempre tive muita curiosidade pelos sons todos! Tudo que vibra e que toca eu quero fazer vibrar com outra coisa, criar um ritmo, desde de pequeno. Eu tive uma banda de Trash-Metal quando em tinha quatorze anos, minha primeira banda, minha primeira experiência. Ganhei uma guitarra, tinha um garoto que andava de skate comigo na escola e chamei ele para… Na verdade em juntava um dinheiro de mesada há um tempo para ir para Fernando de Noronha (PE), que eu queria mergulhar. Juntei um dinheiro junto com dois primos e quando chegou a época certa, estava com a grana na mão, tudo certo, meus primos já comprando a passagem, eu saí de casa para comprar a passagem e cruzei com um amigo meu da escola e ele disse que estava com um contra-baixo na casa dele e estava doido para montar um banda. Disse que tinha uma guitarra. Só faltava uma bateria e uma caixa de som. Peguei no meu bolso, olhei o dinheiro e não aguentei. Passamos na loja e comprei a bateria, microfones, caixa de som e liguei para o meu primo falando que não ia mais para Fernando de Noronha e que ia montar uma banda. Fiquei feliz da vida. Eu não era um bom guitarrista na época, era muito jovem. Um dia chegou um cara para ver o ensaio e pediu para tocar uma música na guitarra e o cara destruiu (tocou bem). Ai eu peguei o baixo. Um tempo depois chegou outro cara e tomou meu lugar no baixo. Eu fui saindo então da banda. Mas eu sempre toquei gaita e comecei a tocar ligado na distorção de guitarra… Fui tocando em outras bandas, descobrindo outros instrumentos… Piano. Fui tocar gaita mais limpa numa outra banda. Fui pulando de galho em galho, adquirindo instrumentos. E de lá para cá quando fui morar em Fortaleza, até hoje eu compro instrumentos, tenho serrote, baixo acústico, harpa, cítaras, vários sintetizadores, guitarras e baixos sem trastes, saxofone, trompete, tenho trombone de vara…
G.F.: Você toca tudo isso?
D.C.: Toco todos eles mas não sou bom em todos eles, alguns deles eu estudei um pouco, alguns bem difíceis como o serrote eu estudei muito. E dentro da música ainda, conheço alguns amigos na faculdade de música de Fortaleza e só depois da faculdade que a gente foi montar essa banda de Jazz com música eletrônica (Realejo Quartet). Eu descubri o mundo do Jazz que é difícil para caramba e me aventurei a tocar harmônica. Improviso pouquíssimo. Essa mesma banda é uma banda que sai de uma outra banda que eu também fiz parte da formação inicial que se chama Cidadão Instigado, que é uma banda de Fortaleza que é sediada em São Paulo agora, que é composta pelo Fernando Catatau. Grande amigo parceiro que me chamou para a gente trabalhar. E o Fernando, a banda dele era na época bem experimental, faço algo de trilha sonora para as histórias dele. Então a letra dele era uma história e a música era a trilha para essa história, esse era o show do Cidadão Instigado. Um show com uma dinâmica bem louca, uma parte que dançava outra parte que caia. Era como se você estivesse ouvindo aquela história, era uma trilha para uma história, não uma base musical para uma poesia cantada. E eu fazia a parte dos ruídos dessas histórias, era parte da atmosfera sonora. Isso foi me criando coisas na cabeça e me dando subsídios hoje para o que faço no som, nos desenhos sonoros para cinema. Muito do Cidadão Instigado eu trouxe, dos experimentos sonoros. Com o Cidadão eu toquei três anos e com o Realejo Quartet eu toquei mais dez anos. Essa foi minha história com banda. No meio desse caminho, antes disso aliás, eu toquei com o Belchior, só gaita. Viajando pelas cidades fazendo turnê, tocando nos shows homéricos dele, gigantescos, show em estádio, público de dez mil pessoas. Dentro do cinema, com minha carga musical forte, essa coisa de… E dentro da faculdade assim, eu sai… O reitor da faculdade tocava gaita e ele simpatizava muito comigo, eu era o único gaitista da faculdade. Tinham cursos no Brasil e em vários lugares que eu falava que eu precisava… Eu não tinha dinheiro, pegava ônibus para faculdade, estudante mesmo. E eu pedi para ele, que tinha um curso em Curitiba, curso de verão, um mês. Com a Orquestra Harmônica de Curitiba, única orquestra de harmônica do Brasil, quatorze gaitas no palco, uma das únicas do mundo nesse porte, eu queria estudar com eles, e depois eu falava que podia aplicar aqui em Fortaleza na escola. E ele bancava essas minhas ideias. Fiz grandes amigos em Curitiba, o Benevides Chireia, Ricardo Rosa que era o cara que afinava. Um outro ano fiz um curso só de afinação e manutenção de gaita, que é muito difícil, pouquíssimas pessoas no Brasil fazem isso. Inclusive eu fiz um curso com o Hermeto Pascoal lá me Curitiba que era em cima de harmonia e aventura. Misturava vários instrumentistas ao redor de um piano, tocava um piano, colocava um campo harmônico na lousa e todos esses instrumentistas iam estudar aquilo e algumas escalas possíveis para trabalhar improviso em cima daquilo. E o Hermeto estuda o seu jeito de improvisar, se tu é medroso, se tu te aventura, se tu é um cara que ousa, qual é o seu pensamento em cima da harmonia, seu pensamento construindo melodias. Ele consegue dissecar você através de uma escala que você acabou de fazer, é como um astrólogo que vê seu mapa astral… E o Hermeto dizia umas coisas de mim que era isso. Ele me ensinou a me aventurar na música e isso eu trouxe muito para o cinema. Muita coisa que eu faço hoje no cinema eu trouxe dessas oficinas com o Hermeto, da aventura. Ele valoriza muito o músico de ouvido, de orelha. Que é o cara que ainda não deu conta de toda essa estrutura, do mundo acadêmico, da leitura musical em cima de uma harmonia elaborada. Esse cara que está indo no “feeling”, ele valoriza tanto esse cara que tem essa bagagem toda acadêmica, quanto o cara que é de ouvido. Talvez ele valorize mais esse cara que é de ouvido… Ele gostava muito de mim. Eu me jogava mesmo, errava muito e ele ria, ele nunca repreendia um vacilo, vacilo para ele era sinal de aventura mesmo. O erro, quando se erra uma vez, você foge dele, você o assume descaradamente. Então quando tu erra, tem que errar de novo e de novo. Ai as pessoas não sabem se é um erro ou se foi proposital. Pode ser até um deslize, mas esse deslize está incorporado no resto…
G.F.: Como você faz (se é que faz) a transposição dessa bagagem musical para o campo do cinema? O que você leva, o que você deixa para trás? Algo que eu queria saber também é se você teve uma formação de cinefilia ou como construiu sua formação em cinema.
D.C.: Então, só para concluir a história com o Hermeto Pascoal. Ele me destravou dessa coisa tão ligada a algo mais acadêmico. De dar vazão a sensações mais irresponsáveis, vamos dizer assim. Deixar mais essa irresponsabilidade, essa descoberta, esse teste sem saber. “Não se bitole muito nessas referências, deixa aflorar algo mais pessoal, algo que é da tua personalidade, do seu jeito de pensar”. Essa é exatamente uma das coisas que eu levo para o cinema. Eu sei que eu estou fazendo uma coisa que não é o clássico, não é o certo. Mas que se der certo vai ser muito maravilhoso. Então as vezes eu passo por alguns riscos, claro que nas suas devidas proporções. Eu não boto para perder o trabalho do diretor, do filme. Tudo isso que eu estou falando, do que eu aplico no cinema, é tudo conversado, tudo combinado. Como vai ser a estética sonora do filme, como o som desse filme vai acontecer, ter uma boa conversa com diretor antes das filmagens. O diretor tem que topar certas coisas. O estilo dessa captação, desse tipo de trabalho, quem determina isso é o diretor. As vezes ele já vem com algumas questões. “Pô, eu quero um filme super naturalista, não quero forçar a barra, não quero colocar microfone de lapela em ninguém, quero que os sons tenham perspectiva, quero que tenha as ambiências dos lugares onde as personagens estão, quero limpar o menos possível dessas coisas”. Tem filmes assim e tem outros que o desejo é de se isolar o máximo possível a voz e trabalhar na pós, fazer tudo irreal, brincar com as perspectivas, trazer a voz que está lá longe para perto e vice versa. Dependendo de como essas questões acontecem eu vou trabalhar esse tipo de som. Mas eu me aventuro bastante sempre na técnica no sentido de sempre criar maneiras diferentes de se utilizar um microfone direcional e uma lapela por exemplo. Por que se eu for usar sempre igual, não me interessa. Eu quero exercitar essa aventura musical no cinema. E eu gosto… Eu sempre penso nisso, o som dos filmes como trilha também. Você me perguntou como eu aplico essa coisa da música no cinema, eu aplico em dois lugares. Eu estava muito frustrado depois de ter me envolvido bastante com som direto no cinema, de ter feito uns filmes legais, de ter tido essa sorte de cair nas graças de uma figuras legais e estar fazendo muito filme no Brasil. Então acho que é um pouco dessa coisa da relação com o diretor também, dessa minha vontade de traduzir da cabeça dele para o som. Não fazer aquela coisa que todo mundo faz do som do filme do jeito que é para fazer, as vezes briga com o diretor, briga com todo mundo para fazer da melhor forma… A melhor forma é a forma do filme. Não a forma que você quer fazer, não a forma que você aprendeu mas talvez da forma que você vai aprender ali, tem que estar aberto para essas coisas. Isso é como eu penso. As vezes eu me sentia frustrado de ter acontecido isso e de eu ter me afastado da música propriamente dita, de tocar. E eu comecei a me aventurar a fazer coisas para os filmes, trabalhos de amigos, e começou a rolar. Hoje eu tenho um estudiozinho adaptado aqui na ilha (Ilha Grande de Santa Isabel, bairro de Parnaíba-PI onde a entrevista foi realizada e onde Danilo mora). Já tive um estúdio super legal em Fortaleza, sai de lá, aluguei meu apartamento. Fortaleza está impossível de morar, loucura, violência demais e vim morar aqui na Ilha Grande de Santa Isabel. Então eu divido o som hoje no meu jeito de captar e na pós, que é o que tenho feito mais hoje. Pego um filme com som captado e vou fazer o desenho sonoro dele. Desde de trabalhar essas vozes, de editar mesmo, gosto de editar, de escutar de escolher, de trocar, de dublar, adoro dublar, refazer esses sons e trabalhar os sons dos filmes como trilha antes de pensar logo numa música, num som, num elemento sonoro musical ou qualquer coisa desse tipo. Eu estou pensando que o filme já tem um som. Então quando eu recebo um filme eu fico vendo e ouvindo o som, tento ver o material bruto, o que que tem de som nesse filme. O que tem na atmosfera ao redor das locações, como eu posso trazer isso para intensificar uma cena. Numa cena que é um pouco mais melancólica o que eu posso trazer de ruído, o que se repete ali dentro que vira um ciclo, um ritmo. Tem uma porta que bate, será que a gente não deixa essa porta bater ou então na cena que pararam a porta, vamos gravar sem porta. Quero ver o som separado, sem a porta, “não, vamos inserir essa porta batendo, sujando”. De repente isso traz para aquela cena uma coisa, um clima que não precisa de mais nada, de música, de som, de mais nada. De repente tem um lugar que esse cara está andando que vamos botar um ruído, um som… Pô tem árvores, então vamos imaginar que nessas árvores bateu um vento e elas estão balançando muito, vamos primeiro balançar esses elementos aqui (Danilo faz barulho de vento com a boca). Vamos fazer uma coisa dinâmica nessa situação para criar como se fosse folhas com pés… Será que isso rola um ritmo, será que rola uma coisa que pode… Entendeu? Então é uma coisa que eu fico buscando, vou buscar ruído, um pedaço de um instrumento, um baixo acústico com um arco passando em cima de uma nota grave (Danilo faz som grave com a boca). Será que isso se confunde com o som do motor lá no fundo? Que você pensa que é um motor e quando o motor vai sumindo o som vai se intensificando, você descobre que não é o motor e vê que é uma nota musical, um som, ai corta para outra cena. Então como é que eu trago esses elemento sem ser um jeito… De sair da obviedade. É algo que eu fico sempre pensando… Eu penso primeiro o jeito que seria o clássico, o melhor jeito, para saber que dessa forma é que não quero fazer. Ai então vejo quais seriam os jeitos…. Quando eu vejo uma cena e imagino um som, é exatamente esse som que eu não quero trabalhar! Eu elimino todas as formas que eu já enxergo e tento como se eu partisse de um “plano B”, esse é o melhor jeito mas infelizmente não é assim que vamos fazer, tem que fazer de outro jeito. Vou pensar outras coisas sabe, quando você pega um filme… Por exemplo, eu já peguei um filme, um curta-metragem que todo som do filme foi perdido, as fitas DAT’s do filme. Tive que refazer o som todo!
G.F.: Que filme é esse?
D.C.: É um curtinha de um amigo, não circulou em festivais, era um filme de amigo, de exercício, em Mini-DV e ele não captou o som…Eu tive então que refazer essas coisas. Teve também um outro filme, chamado “Querência [4]” (2012), e em certo momento da pós-produção o HD foi perdido, perdeu-se o filme todo! E a única coisa que ela tinha era o Telecine [5] do filme, foi filmado em película… Então ela tinha a imagem do filme toda mas não tinha mais o som do filme. Eu tinha uma back up com…
G.F.: Você que fez o som direto?
D.C.: É… Mas tinha um back up com muita coisa de atmosfera, nem lembro direito o que eu tinha. Lembro que tive que refazer umas coisas… Enfim, a gente teve que construir, não tinha mais as claquetes porque só tinha o telecine, não tinha mais nada! Ai então eu tive que inventar tudo e foi muito bom! Foi uma experiência muito boa, de botar uma coisa que não era dali, de reconstrução mesmo. Fiz uma trilha para um momento que o Zé Baiano mata a Lídia, que é uma cangaceira. Que é a história dela né, que ela trai o marido e o Lampião força o marido dela a matar ela e tal… Só para dizer um pouco dessa coisa como eu penso primeiro o som e hoje eu consigo trazer…. Aí depois a minha vontade é bem grande de trabalhar a música logo no filme também de botar o som e tal… Fico só esperando essa hora. Mas na hora que acontece é tão foda porque eu já não me deixo vencer pela vontade de já ali colocar um… Porque o mais raso é isso, o mais rápido e o mais fácil é colocar logo a nota do piano, já foi, já construiu e a cena está feita. É rápido isso, você bota qualquer nota musical e transforma um lugar, manda para outro universo e o diretor já gosta e acabou. Mas esse é o jeito mais fácil, o jeito mais preguiçoso mesmo. Minha busca então é de como quebrar isso, quebro a cabeça para… As vezes num filme o cara chega lá, e eu tenho um monte de instrumento para fazer ruídos, coisas e tal. E chega o diretor querendo brincar com isso e de repente ele entende que a potência do filme está no som direto, nos ambientes, nos ruídos e sai de lá sem nenhuma nota musical. Mas ele não sai frustrado, sai feliz! Porque a gente construiu junto, ele entendeu junto comigo. Eu acho que entender isso… Eu lembro muito do Monasés de Souza, um violonista de doze cordas incrível do Ceará. O Monasés é um músico que… fenomenal! Auto-de-data trabalha com a escala Nordestina e Árabe, meio Blues meio inconsciente, coisas que ele faz que é lindo o trabalho dele, compõe umas harmonias e tal. E esse cara gravou um disco uma época, ficou amigo do Hermeto (Hermeto Pascoal) por conta do festival de Jazz de Guaramiranga (Ceará) e ali ele (Monasés) vai para o Rio de Janeiro e convida o Hermeto para fazer uma faixa com ele. Entra num estúdio, super curioso para saber o que o Hermeto iria fazer, crente que ele ia pegar uma sanfona, um acordeom e mandar umas coisas sofisticadas, um trompete, um piano, alguma coisa legal em cima da harmonia. O Hermeto só ouve as coisas na hora, ele não quer ouvir a música antes como todo mundo faz. O Hermeto ouve na hora e ele acredita na coisa no primeiro momento que se dá a relação. Naquele momento que você conhece alguém, isso diz muito. O Hermeto, na música ele é muito assim, ele ouve e já pensa o que é e sem pensar muito ele vai no “feeling”. Como a música acontece a primeira vez para as pessoas. Então ele acredita que você gravou daquele jeito e é assim que as pessoas ouvem a música da primeira vez. Então quando ele chegou no estúdio para gravar com o Monasés, ouve a música, fica todo mundo naquela tensão imaginando qual instrumento ele (Hermeto) iria tocar, o que ele vai fazer… Então o Hermeto pede um copo d’água, entra na cabine, pede para tocarem a música. A música começa, um puta som, e começa a “tocar” o copo de água (nesse momento Danilo pega um copo de água e começa a emitir uma série de sons tentando imitar o Hermeto). Começou a dizer um monte de loucuras e já vai embora, diz que a música está ótima. Nem perguntou se tinha take um, take dois, foi aquilo mesmo. Ai ficou o Monasés super triste, deslocado, não sabia mais onde estava… Depois eu fiquei pensando, conversei com o Monasés sobre isso, disse: “Mona, eu achei isso um super elogio, achei uma das coisas mais lindas de ter acontecido para você. Porque o Hermeto é um multi-instrumentista, toca tudo…”. E depois já se conversou sobre isso, o Hermeto confirmou e tal. O Hermeto não escolheu nenhum instrumento porque ele achou que a música já estava completa, não tinha instrumento para adicionar, não tinha mais nada para colocar. A essência da música já estava feita, qualquer instrumento que entrasse ali era para dizer que era um instrumento, ou o Hermeto. Ai ele (Hermeto) disse que se é para o Hermeto estar aqui, se não tem nenhum instrumento que componha mais essa música porque ela está cheia, o Hermeto vai estar aqui como entidade, como outra coisa. É o Hermeto que ele quer?! Então o Hermeto vai estar aqui, mas instrumento não dá mais para por nessa música. Eu achei isso foda! É um exemplo de humildade, de interpretação, de criação… O Hermeto é foda pô! Ai então o Monasés caiu na real… Ficou deprê no começo mas depois viu que na verdade o Hermeto tinha feito um baita elogio, entendeu a música como completa, não precisava de mais nada. As vezes nós achamos que precisamos de mais coisa, mais coisa… Bom você tinha me perguntado outra coisa mas é que a música para mim é muito forte. Acho que consigo dizer mais sobre mim através da música, mais de quem eu sou…
Continua…
[1] Câmera fotográfica analógica que utiliza médio formato, 120mm.
[2] Primeiro sistema de gravação portátil de som direto, grava em formato magnético. Inventado por Stefan Kudelski no ano de 1951. Considerado o precursor da gravação de som direto.
[3] Formato de gravação híbrida digital-analógico.
[4] Dirigido por Iziane Filgueiras Mascarenhas. Ficção. 35mm. 19’58”. CE. 2012
[5] Telecine é o processo de digitalização de um material filmado em película cinematográfica.