Restauração de Som no Cinema Brasileiro
José Luiz Sasso é um dos maiores, se não o maior especialista do Brasil em restauração de som de filmes. Após uma agradável tarde de aprendizados na JLS Facilidades Sonoras com esta lenda viva do som do cinema brasileiro, reproduzo aqui um pouco da história e das especificidades práticas desse importante trabalho de preservação audiovisual.
“A história da restauração no Brasil começa comigo quando o Lauro e o Eduardo Escorel queriam trazer à vida de novo o filme “Cavalinho Azul” (Eduardo Escorel, 1984) e o “Sonho Sem Fim” (Lauro Escorel, 1985), ambos eu mixei na Álamo. E eles tinham as fitas de ¼ desses filmes guardadas em Nagra. Isso era o back up da mixagem do perfurado 35mm. Eles me ligaram, querendo restaurar o som do filme e eu me propus a fazer. Mas eu não tinha o Nagra, então o Geraldo Ribeiro que transcreveu para um arquivo wave (estamos falando a 24 quadros). E aí chegaram as imagens pra mim. Acho que eles iam exibir na TV Cultura aqui em São Paulo, mas não queriam o som do telecine da cópia. Neste caso, na verdade não foi uma restauração literal, mas foi uma re-masterização. Já que estava em fita de ¼, a qualidade era absolutamente normal, ainda mais gravado em Nagra. E aí a gente passou em um software, tiramos o chiado, tiramos um pouco daquela característica do cinema monofônico de ser um pouco mais rico em médias frequências… se criou um pouco mais de graves… Então, eu re-masterizei esses dois filmes. E aí isso ficou aí perdido. Foi mais ou menos em 2003 ou 2004, não me lembro exatamente. Mas nessa época ninguém falava em restauração ainda.
Aliás, nessa época me parece que um estúdio do Rio de Janeiro estava começando a restaurar a obra do Glauber Rocha, especificamente o filme “Terra em Transe“. A TeleImage também já estava começando a fazer a restauração da obra do Joaquim Pedro de Andrade e eles vinham aqui fazer a audição do material restaurado. Tanto que tinha um técnico francês que vinha junto com a Alice, filha do Joaquim Pedro, e seus irmãos… e eu fala: “Estou achando isso um pouco apertado demais”… mas eu não estava restaurando a obra do Joaquim Pedro.
Não sei exatamente quando, mas eu recebi uma ligação do Eduardo Escorel, que foi quem montou o filme, dizendo que a Paloma Rocha, filha do Glauber, não estava satisfeita com os resultados do “Terra em Transe”. Parece que tudo estava sendo feito de forma digital, não conheciam a parte analógica do processo do ótico, questões da densidade, dentre outros problemas que você tem pra resolver. E aí um dia a Paloma e o Eduardo vieram aqui e me trouxeram um monte de papel dizendo os arquivos do filme que existiam na Cinemateca. E eu lembrei que em 1988 eu havia feito uma restauração desse áudio lá na Álamo para a preservação, pois já estava tudo se esfacelando. O Sr. Michael Stoll, dono da Álamo, tinha um bom relacionamento com o Carlos Augusto Calil que comandava a Cinemateca nessa época. Enfim, esse filme e alguns outros, a gente tinha refeito o ótico. Ou seja, re-transcrevemos a partir daquilo que existia tentando fazer o melhor possível, mas era tudo analógico. Basicamente não havia nenhum equipamento para a restauração. Só a equalização da mesa… a gente fazia isso só para não perder o material sonoro.
Então, eu expliquei pro Lauro e pra Paloma que era preciso fazer uma garimpagem para procurar os materiais que existiam do filme não só na Cinemateca, mas no mundo todo. Ninguém havia feito uma pesquisa sonora para determinar os materiais a serem utilizados. Aí a Paloma começou a se entusiasmar com a ideia e acabaram achando negativos de som, uns originais, outros não. Se o filme tinha lá suas quase 2 horas, a gente tinha aqui pelo menos 12 horas de material de diversas fontes, mas nunca vindas de um perfurado. Sempre ou película com imagem, ou negativo de som, ou cópia de preservação de som, ou contra-tipo de som, enfim… Passamos uma tarde aqui ouvindo e avaliando esses materiais que existiam.
E aí nessa época eu já tinha alguns projetos com o Alexandre Sobral, e eu perguntei pra ele se ele gostaria de encarar essa comigo. A gente dividiria o trabalho. Eu cuidaria do restauro analógico, ou seja, a garimpagem dos materiais, a pesquisa das densidades do negativo, etc, junto com o pessoal da Cinemateca. Chegaria no melhor possível do analógico, e depois entraria pro Sobral fazer os processamentos digitais com os plug-ins. E aí eu tive que comprar plug-ins específicos para restauração. Eu comprei um da Algorithmix que custou 3 mil euros, por exemplo. Na época o Daniel Sasso, meu filho, montou um sistema que rodava Pro Tools com Adobe Audition tudo junto. Era Mac e PC rodando juntos com programas diferentes. Então, por exemplo, esse plug-in que a gente tinha da Algorithmix trabalhava ou em Nuendo ou no Adobe Audition. É um plug-in desenhado especificamente pra som ótico, então ele tirava chiados, estalos, tudo voltado realmente pra som ótico. O áudio saia do Adobe, entrava nesse plug-in que já fazia essa limpeza em tempo real. Demorava…
Não tinha nada a ver com plug-in de recuperação de discos de 78rpm, que aí já é outro tipo de ruído, outra situação. Restauração você tem que em fases, em etapas. O mesmo plug-in da restauração de discos necessariamente não funciona pra som ótico. O som ótico tem algo inerente que é o próprio chiado do negativo. E o negativo tem uma distorção que é inerente a ele. Tanto que a maioria das pessoas telecinavam o negativo e restauravam o som, o que é a maior besteira que alguém pode fazer. Porque o negativo tem essa distorção característica que é cancelada na hora que você faz a cópia. É diferente do disco, que não tem esse problema. Se você pegar a matriz de um disco, o “negativo” de uma matriz de um disco, o original, aquele que foi riscado (porque depois, eles fazem as contra-matrizes – que são os positivos – e que na verdade viram o “negativo”, pois tem que imprimir), são outros ruídos que existem. Você tem o chiado da matéria, mas é um outro tipo de chiado, os estalos, os pipocos, são diferentes do material fotográfico que tem risco, tem corte, tem um monte de coisa.
Bom, isso foi pra você entender como a gente começou e qual era o esquema que a gente usava. Agora vamos entrar nas questões de restauração propriamente ditas.
No “Terra em Transe” eu estava mais como consultor do que como técnico de restauração. A gente começou mesmo a fazer, logo em seguida, o “Dragão da Maldade” (1969), o “Barra Vento” (1962), depois mais pra frente veio o “Leão de Sete Cabeças” (1970), o “Idade da terra” (1980), o “Pátio”, que é um curta-metragem dele. Paralelamente também entrou o projeto do Leon Hirszman. Na realidade, essa “usina” de equipamentos que a gente criou foi pra pegar esses dois grandes trabalhos: a obra do Leon Hirszman e a do Glauber Rocha. Mas já estávamos recebendo também documentários do Renato Tapajós. O próprio Eduardo Escorel me enviou também um documentário da Maria Bethania, onde o próprio Eduardo estava fazendo som direto. Era um material que estava guardado na Biscoito Fino.
Bom, eu vivi o som ótico. A minha formação sobre som ótico foi muito boa. Quem me ensinou foi o engenheiro Carlos Foscolo da AIC (Arte Industrial Cinematográfica), que tinha doutorado pela Westrex Electrical Recording System. Ele foi quem montou os estúdios da Cia. Cinematográfica Maristela, por exemplo. Além de ser um engenheiro eletrônico e elétrico, ele era realmente um engenheiro de gravação ótica. Nessa época eu sabia montar e desmontar um gravador ótico… estamos falando do final da década de 1960. Posteriormente, na década de 1970, aprendi muito com o Renato Cury na Álamo, onde implementamos no Brasil o Cross Modulation. Até então, não se fazia o teste de cross modulation no país. O teste é realizado para avaliar o problema do spreading, que é o espalhamento dos sub-grãos não revelados, sub-expostos, que injeta chiados, distorção harmônica na película, etc. Eram feitos testes absolutamente fictícios. O laboratório determinava uma densidade x, porque o padrão era aquele. Mas isso não significava que essa informação estava certa. Foi então na Álamo que a gente começou com o teste de cross modulation com o gerador e o leitor próprio de cross modulation.
Mas antes disso, na própria Álamo a gente usava aquele teste de cross modulation “macarrônico”, mas que funcionava… está inclusive nas literaturas americanas… que consistia em pegar uma frase sibilante… A gente usava a “Você sabia que o sabiá sabia assobiar?”. Então, quando a gente queria fazer um teste de cross modulation, sem ter ainda o aparelho do cross modulation real, a gente chamava uma dubladora que era muito querida, a Helena Samara. A gente elegeu a voz dela como nossa voz padrão, porque o “s” dela era muito limpo. Era um “s” absolutamente neutro, se é que agente pode tentar definir o indefinível. Então a gente gravava essa frase no negativo de som em várias luzes, o que significa que iriam resultar em várias densidades. Isso ia pro laboratório e eles revelavam no tempo padrão deles… 6 minutos, 5 minutos… seja lá qual era o material, porque a cada tipo de negativo de som você tinha um tipo de revelador ou um tipo de procedimento de revelação. E aí eles copiavam também na luz padrão deles. A gente não queria mexer no laboratório.
E aí vinha um resultado daquele teste copiado várias vezes. A gente ia pro estúdio e no reprodutor ótico reproduzia-se as cópias e três pessoas ficavam ouvindo. Aonde você ouvia a frase o mais limpo possível, ou seja, o “s” tinha som de “s” e não de “ch” ou “sh”… porque a medida que o erro da densidade mudava do menos para o mais, o som ia melhorando. Então, você vinha de ruim e ia melhorando, melhorando… chegava no ótimo e ia piorando até ficar ruim de novo. A medida em que essas densidades iam se encontrando, chegava no momento em que você ouvia perfeitamente o “Você sabia que o sabiá sabia assobiar?”. As vezes tinha até mais que uma cópia boa e a gente falava “se a 6, a 7 e a 8 estão boas, vamos ficar com a 7.” Então daí a gente decidia em que amperagem e densidade que o negativo ia ser gravado. Por exemplo: com a amperagem 6.5 A, que vai dar uma densidade no negativo de 2.30 ou 2.40, para uma densidade de cópia colorida com leitura em infravermelho com 1.45 de densidade de cópia.
E aí a Álamo usou isso até chegar o equipamento do cross modulation que operava por frequência. Uma baixa frequência de 400Hz que, sobre ela, em cross modulation, ou seja, modulava cruzado, vinha uma frequência de 6KHz, no caso do som mono.
Tem um ruído que lembra muito uma cigarra. Você ouve dois sons, um grave e um agudo, duas senoides. E o leitor vai vendo o quanto do componente grave deixa de existir no agudo, ou quanto agudo tem dentro daquele componente grave. E é onde você tem a melhor leitura possível em decibéis. Mesmo assim, nós não deixamos de fazer o teste do “Você sabia que o sabiá sabia assobiar?”, porque às vezes o cross modulation te dava uma leitura, por exemplo, de 6.5 Amperes para uma densidade de 2.40, e no teste do “Você sabia que o sabiá sabia assobiar?” era uma antes, ou às vezes uma depois. Então a gente empiricamente, através da nossa sensação auditiva… e sempre duas ou três pessoas, nunca uma só… havia uma eleição democrática para decidir… se no cross informasse uma densidade de 2.40 a 2.50, e no teste do “Você sabia que o sabiá sabia assobiar?” de 2.30 a 2.40, fixávamos em 2.40 pra ficar equilibrado. E realmente, o som ótico da Álamo era absolutamente impecável.
Pois bem… na restauração de som eu resgatei esse teste do “Você sabia que o sabiá sabia assobiar?”, mas no caso da Cinemateca eu pedia pra Patrícia de Filippi copiar em várias luzes um trecho de 5 a 10 segundos de uma frase bem sibilante do filme, pra saber qual seria a melhor densidade do negativo de som (quando tínhamos um negativo). O negativo já estava fixo, então a gente ia adaptar a cópia de som para aquele teste. Ela “positivava” o negativo de som em várias densidades e depois telecinava esse material sonoro, sem imagem. Na época era o telecine Dixi, eles não tinham um Sondor ainda. Então, ela copiava aquele trechinho 7… 8… 10 vezes, cada um com uma densidade diferente, e vinha pra cá com esse material já transferido em um arquivo de áudio wave. Tinha também um boletim de som que ela fazia contendo as densidades de cada cópia. E aí, eu e o Sobral ouvíamos até encontrar a densidade correta. A gente anotava, por exemplo: a melhor densidade é a luz 5 que deu 1.35 de densidade em uma cópia preto e branco. Aliás, a cópia preto e branco é o melhor material pra você trabalhar com som, pois no colorido você tem os pigmentos e no preto e branco você tem prata pura. Ou seja, a pigmentação é diferente. No colorido você tem uma quantidade x de prata e o resto é pigmento. No preto e branco não, é prata pura. Portanto, sempre se faz a cópia preto e branco. E aí, quando chegávamos no melhor resultado, a gente mandava um relatório falando a melhor densidade, com a melhor luz de voltagem x, e com uma tolerância de tanto a tanto.
Ela então pegava e copiava todo o material com aquelas especificações, me enviava e eu já ouvia na minha querida e estimada mesa Cinemix. Eu ouvia o filme todo e já dava um primeiro tratamento analógico, usando ou um equalizador gráfico de 1/3 de oitava; ou um noise reduction da Dolby, também analógico, o Cat 430; usava também o Brauner De-esser… Enfim, haviam alguns componentes analógicos que saiam da mesa por insert… a gente começava a ouvir até chegar em um som que considerávamos bom. Tudo era gravado em tempo real. Então, era a partir daí que esse material, junto com o original que não foi mexido, ia pro Sobral. Ele então começava o tratamento digital desse áudio, ou seja, tirar chiados, distorções, etc. E sem “apertar” plug-in, pois o plug-in em qualquer sistema é burro. Pra ele, um vento e um chiado se soarem parecidos são considerados a mesma coisa. Se o ruído da cena é o vento e você começa a “apertar” o plug-in, ele vai retirar tanto o chiado quanto o vento. E aí a gente tem que tomar essas decisões… até onde usa-se esse plug-in para não interferir na obra.
Tem duas turmas divididas no campo da restauração. Uma que diz que temos que melhorar tudo que for possível, que eu discordo. E aquela que diz que vamos melhorar o que for possível. Eu sou da turma que obedece mais o critério de chiado é som. Ele existiu, ele continua existindo e faz parte de uma época. Óbvio que você não vai deixar um chiado com -30dBs de sinal dentro de um áudio que vai até -55dBs. É um absurdo… não tem muito sentido. Então você tem que encontrar um parâmetro no plug-in que dê pra colocar isso em um nível minimamente confortável pra quem for assistir. Porque vai ficar muito estranho você ter uma imagem que por mais que você a restaure, é uma imagem restaurada… com um som absolutamente limpo que não “cola” naquilo. Isso já foi pauta de muitos debates que a gente fez na Cinemateca…
Ou então você tem que partir pro sistema norte-americano de restauração. Eles saem do zero… eles têm as pistas originais guardadas, re-mixam, re-masterizam obedecendo tudo que foi feito na época do filme. Se você pegar esses filmes épicos que estão sendo restaurados… aliás esses dias eu comprei o Blue-Ray do “Laurence da Arábia” e assisti três vezes. O filme tem três horas de duração e eu fiquei um dia inteiro vendo… admirando o trabalho. Eu não vi o filme, eu admirava o trabalho. Fizeram 8K de escaneamento pra virar o Full HD com negativo 65mm. Eles conseguiram colocar mais pixels do que o próprio negativo tinha. E o som, usando as pistas originais do filme. Eles tinham o magnético mixado, esse magnético foi restaurado, remasterizado… tiraram o chiado mas não se mexeu em absolutamente nada. Aliás tem um filme brasileiro que foi restaurado que é um crime! Resolveram fazer 5.1 de um filme mono. Isso seria um crime…
Então aqui, dentro desse conceito todo… não só com a Cinemateca, mas também com a Paloma, ou com o pessoal do Joaquim Pedro, ou com o pessoal do Leon Hirszman… assim: “turma, se não der nós vamos fazer mesa branca pois eu quero saber onde exatamente a gente vai mexer nisso, nem que tenha que chamar o espírito do cara aqui pra nos ajudar” (risos). Tinha situações que a gente precisava tomar decisões e aí também vem um contraponto… Por exemplo: tiveram vários filmes que nós recebemos e ao assistir a gente questionava… “não é possível que alguém poderia sonorizar um filme daquele jeito!”. Por mais tosca que era a nossa tecnologia… por mais mambembe… por mais brasileiro que a coisa fosse, tudo feito na base do jeitinho… Tinham filmes que eram fora de sincro, por exemplo, mas você via que não era verdadeiro. Se você mexesse no pitch, ou se você adiantasse 3 quadros, ou atrasasse 4… ou seja, alguém mexeu naquilo depois… no tal telecine daquela época da década de 1980, ou alguém pegou um Nagra, contou 1, 2, 3 e vai… só que um está rodando a 24 outro a 29,97… você vê que o sincro se afasta… Existem componentes no meio do caminho de materiais que a gente recebeu aqui que é óbvio que teve coisa errada. Em algum momento alguém resolveu “fazer fora do pinico”. Por mais “feliniano” que fosse a ideia do Cinema Novo… porque o Fellini era um cara que estava pouco se lixando pro sincronismo, mas tinha um critério.
Então a gente começou a descobrir que haviam casos que não estavam da forma original. E aí de repente aparece uma cópia original, como aconteceu em algumas outras vezes… de um colecionador desses domésticos que tinha uma cópia 16mm do filme, por exemplo, e aí você vê que o filme estava em sincro.
Um filme que nos deu muito trabalho foi o “Idade da Terra” do Glauber. É um filme que originalmente não era pra ter ordem. O projecionista que projetasse do jeito que ele quisesse. Então todos os inícios e finais de rolos eram fade-ins, fade-outs, enfim… era uma coisa que não era pra você emendar. Agora, se você restaurar um filme assim… aí vamos fazer “mesa branca” de novo… Não teria sentido você fazer uma puta restauração de imagem, que não inicia em fade-in e termina em fade-out, e o som entra e sai em fade-in e fade-out no início e final de rolo… isso porque o som está adiantado 21 quadros no ótico em relação à imagem…
Então nesse restauro em particular, a gente recompôs todos inícios e finais de rolos pra que quando o filme fosse emendado nessa ordem que existe… uma ordem consensual que deram. Outra questão desse filme em particular, por exemplo, é que tinham distorções que o próprio Glauber queria. Então você não podia colocar em um D-cracker ou em algum outro software pra tirar distorção porque era assim que ele queria. Então isso também era outra coisa que, como restaurador de som, no caso o Sobral nessa área do digital, a gente passava horas pra discutir uma sequência de 5 minutos pra decidir o que é ruim e o que é certo, ou o que este ruim está certo. Então as vezes vinha o Eduardo Escorel pra dar um ouvida, ele que participou desse trabalho… existe alguém que viveu aquele momento… então esta pessoa tem que ser respeitada. Teve casos que isso não foi possível, não aconteceu e a gente não sabia de fato como era. Aí então você tem que ficar “nem tanto ao céu nem tanto ao mar” pra tentar encontrar um parâmetro. Pelo o que eu ouço ou ouvi das pessoas em relação à restauração de som, todo mundo nunca reclamou das restaurações feitas aqui exatamente por tentar manter essa coerência, mais que originalidade.
Uma ideia que eu já falei em outras discussões… O DVD é uma mídia generosíssima. Nada impede de você colocar os dois arquivos em uma versão comercial do filme em DVD, pra efeitos de pesquisa, por exemplo. Então no DVD você pode ter o áudio original, exatamente como era a cópia 35mm, com os erros inerentes, etc; e um arquivo totalmente restaurado.
Mas enfim, dentro desse processo de restauração tem toda essa preocupação de primeiro resgatar o analógico da melhor forma possível. Isso significa pesquisando, procurando…. Porque, por exemplo outro caso interessante foi o do “Dragão da Maldade” que no fim nós tínhamos mais som do que imagem. Perdeu-se muita coisa desse filme por conta de um incêndio de um laboratório na França… e esse filme ficou aos cacos, tanto que as legendas do filme restaurado estão em francês. E aí começaram a vir pedaços do filme de várias partes do mundo. Tinha um trecho que nós não tínhamos aqui no Brasil, se não me engano era o início do rolo 3 ou do rolo 4… é aquele momento que tem a Odete Lara com o Hugo Carvana cantando “Carinhoso”. Faltavam de 30 a 40 segundos deles cantando essa canção. E estava tudo picotado. E aí a Sara Rocha, a filha da Paloma, estava na Europa e conseguiu uma versão pirata da internet de não sei aonde, a 25 quadros, todo mundo falando com um pitch mais alto… mas aí ela enviou o arquivo pra gente, o Sobral “reafinou” tudo aquilo com os pedacinhos que a gente tinha, e ele conseguiu remontar aqueles 30, 40 segundos iniciais que faltavam. E o mesmo aconteceu no “O Leão de Sete Cabeças“. Até a Paloma falou… “Zé, eu nunca imaginei que existiam 40 segundos a mais nesse rolo de imagem”. Porque aí veio uma imagem, se não me engano, da França ou da Alemanha… e tinha.
Então pra você fazer uma restauração de som, você tem que associar vários questionamentos às duas tecnologias. Primeiro conseguir o seu melhor na tecnologia analógica, conhecendo o processo. Não adianta nada você mandar telecinar um negativo de qualquer jeito. Não dá certo! Você tem que achar a melhor densidade, você tem que pesquisar, tem que ver até onde você pode ir, pra depois disso começar a restaurar na tecnologia digital.
O caso do “Cabra Marcado para Morrer” não foi muito complicado. Esse filme foi mixado na Álamo e como era padrão na Álamo, tudo era depois guardado em fita de 1/4. Ou seja, a gente implorava pro cliente mandar as fitas de 1/4 de polegadas pra gente gravar o master com Pilotone usando ou o gravador Nagra ou o Ampex com cabeça de Pilotone. A gente tinha uns três Ampex. É a mesma coisa do Nagra, mas o Nagra é um gravador pequeno e a gente usava aqueles rolos de 1200 pés. O Ampex também tinha um mecanismo pra você gravar com Pilotone, mas parecia quase uma usina hidroelétrica de tamanho… (risos). Então a gente insistia muito para que os produtores guardassem um back up da mixagem pelo menos pra preservar.
Então o “Cabra Marcado para Morrer” foi feito assim. Quem mixou foi o Carlos dos Santos, o Carlinhos. Eu não mixei esse filme porque fui intimado a sair de férias. Eu já devia estar com umas 2 ou 3 férias acumuladas. Mas eu fiz o ótico do “Cabra Marcado“. Quando eu voltei de férias ainda não tinham feito o ótico aí eu que gravei o negativo de som oficial. Porque ele era um filme em 16mm, depois foi ampliado pra 35mm, e por isso esse processo do ótico aconteceu mais lá na frente… Enfim, e fio feito a tal da fita de 1/4. Quando começou a história da digitalização, por algum motivo o Eduardo Coutinho decidiu transcrever as fitas de 1/4 pra DAT. Excelente ideia se não fosse feita do jeito que foi. Ou seja, as pessoas pegaram aquela fita e simplesmente colocaram em um Nagra e transcreveram pra um DAT. Só que quando a gente recebe fitas de 1/4 nas restaurações… Primeiro, a fita saiu lá do arquivo, que pode ser tanto uma geladeira quanto o guarda-roupa do cara… a gente deixa essa fita se climatizar, como foi no caso, por exemplo, do “Eles não Usam Black Tie“, que tinham os originais em fita de ¼ feitos lá na Nel-Som. Quanto tempo? Menos de um mês não se mexe. Aí você pega e coloca em um lugar com um desumidificador, a mais ou menos 60% pra ela ir se “reaclimatando”. Ninguém mexeu na fita até agora. Depois, com todo carinho e cuidado você tem que desbobinar e rebobinar umas duas ou três vezes pra ela se reacomodar, usando baixa velocidade pra fazer esse rewind… deixa descansar mais uma ou duas semanas… aí você coloca no Nagra e transcreve. Porém, você pegando a fita, bem no início dela você puxa pra ver como está a elasticidade do material. Se você puxa a fita e o óxido segue junto, ou seja, o óxido não se descola, há grandes chances que esteja tudo bem. Agora, se você puxa e o óxido pula fora, tem grandes chances dessa fita prender na cabeça… e aí será a última vez que essa fita será reproduzida. E aí você decide se vai enrolar ela em um carretel ou se já joga direto em um saco preto pra ter menos tensão. Pois se você põe no carretel, vai puxar a fita mais. Então de repente é melhor que ela caia do jeito dela dentro do saco… depois aproveita, amarra e já joga no lixo.
Não tiveram essa preocupação no caso da digitalização do “Cabra Marcado“, então tem vários trechos em que a fita soltou o óxido e foi puxando… aí fica uma frequência aguda apitando, um ruído, e no DAT ficou assim. Eu me lembro que tinha uns 25 minutos do filme com esse ruído que e a gente teve que removê-lo. Tivemos que comprar um plug-in específico que conseguia tirar exatamente essa frequência. Mas não significa que esse ruído é constante, as vezes em um mesmo trecho o Sobral tinha que restaurar em três situações diferentes e depois remendar analogicamente no arquivo, porque essa frequência, esse ruído, variava a tonalidade também. Então no “Cabra Marcado” teve um trabalho de restauração em função disso. Não porque o material fosse ruim ou deteriorado, e sim porque quem transcreveu pra DAT cometeu esse grande erro… e pelo visto nem monitorou. Pois isso aconteceu também no “Eles não Usam Black Tie” que o Geraldo Ribeiro quem fez a primeira transcrição… o Geraldo tem até um forninho pra reacomodar a fita, pra tirar umidade, enfim… Mas vez por outra a fita dava uma engastalhadinha na cabeça do Nagra. Aí eu falei pra ele: “Geraldo, no que engastalhar, repete que depois eu edito”. Mas às vezes passava porque você estando monitorando de fone, ou em alguma situação que talvez não seja ideal… Mas aí ele preferiu me enviar o Nagra pra eu transferir aqui. E foi mais ou menos a operação “saco preto”. Aí eu fiz um pequeno túnel de camurça… o Nagra do Geraldo inclusive tem aquela espátula… nem todos os Nagras tinham isso… que tira uma poeira ou alguma sujeirinha da fita antes de passar na cabeça de leitura. Coisa de suíço! Antes de chegar lá a gente passava também um líquido lubrificante leve… mesmo assim, em uns dois ou três trechos deu uma engastalhada. Aí eu voltava, repetia, engastalhava… voltava, repete. Teve um trecho que era uma caminhada do Richeli com o Guarnieri subindo uma rua todos molhados, que não passava de jeito nenhum sem engastalhar. Eu estava quase tendo que usar o ótico desse filme. Aí eu decidi fazer mais uma vez e ser um pouco mais drástico: vou soltar a fita do outro lado também pra não vir do carretel e aí passou. Eu tirei a tensão do carretel principal e aí ela passou.
Fora isso, haviam trechos muito sibilados na fita que não tinham sentido. Podemos dizer que o bies dessa gravação estava ruim. Pra resumir, o bies é o quanto você “afunda” a gravação na espessura do óxido da fita de ¼. Pra você ter o melhor rendimento da magnetização dessa área você tem que jogar uma frequência fixa junto com o meeter (em 7,5 a gente usava 400 Hz, em 15 era 1KHz) e onde você tinha a maior leitura no VU era o ponto ideal que você estava usando toda a região do óxido da fita. Aí você coloca uma frequência alta de 8 ou 10KHz e fazia mais ou menos o mesmo teste pra ver se não estava perdendo altas frequências. Tudo isso pra buscar a melhor densidade eletromagnética pra você imprimir na fita. Mas nesse caso do “Eles não Usam Black Tie” alguém gravou a fita sem ter feito este teste ou fez com o valor errado. Na Álamo, toda vez que íamos fazer uma gravação em magnético, tínhamos o costume de fazer um teste de bies específico para cada partida da fita. Quando você tem diferentes partidas, pra cada fita você deve fazer esse teste. Então o som da fita do “Black Tie” era muito sibilado, distorcendo as altas frequências, exatamente por causa disso. Eu sentia que tinha também um phasing, ou alguma coisa que soava fora de azimute, ou seja, a cabeça que reproduzia as pistas magnéticas de mixagem (sejam lá 8 ou 10 máquinas) devia estar descalibrada em uma ou duas Magnatechs utilizadas. E eram exatamente as que reproduziam ambiente e ruído. A do diálogo estava boa e a da música também estava. Eu ouvia isso na fita de ¼, então pra ter certeza fui ouvir o negativo de som e descobri que era o mixado original que já estava assim. Aí não teve muito o que fazer. A gente até conseguiu um software “dephasing” que tinha um parâmetro que melhorou um pouco isso.
A parte da restauração você tem que ter em primeiro lugar esse cuidado de não adulterar a obra. Eu sou dessa facção. Chiado é som, respeitamos isso… naquela época era normal. Não estamos fazendo uma reconstituição do filme, estamos restaurando uma obra. Agora, se você tem os materiais originais existentes (que aqui no Brasil infelizmente não se tem esse costume, não existe essa cultura de preservar material). Por exemplo: tem filmes que eu mixei a uns cinco ou seis anos e já perderam o MO-Disk.
Poucos são os que guardam as pistas de som, como o Azulay. No “Doces Bárbaros” por exemplo, que ele guardou nos EUA porque o filme foi censurado e tudo mais…. a uns anos atrás, junto com a Sara Silveira e o Carlos de Andrade da Visom, que era quem tinha as pistas originais das gravações do musical e re-sincronizou todo o material, e nós re-mixamos o filme em 5.1. Mas nesse caso o diretor está vivo, o material está preservado e se trouxe todo esse material para a modernidade. Nesse caso nós nos demos este direito pois o dono da obra está vivo.
Então a gente tem que respeitar uma série de procedimentos técnicos que remonta ao analógico. Não adianta o cara pegar telecine de negativo porque é uma fonte sonora errada. Repetindo: o negativo de som é por si um elemento que trás consigo uma distorção harmônica inerente ao processo fotográfico. E essa distorção harmônica só é cancelada quando positivada. E pra você positivar você tem que encontrar a inter-relação entre essa densidade do negativo e a densidade de cópia. E se você errar aqui… já era!
Outra coisa também é a falta de uma cultura analógica para quem trabalha com restauração no mundo digital. Não adianta, tem que ter alguém que conhece como foi feito, sabe o que é o processo fotoquímico, conhece revelação, densidade, curva de contraste, como funciona o ótico, quais as deficiências de um ótico… Por isso é um trabalho caro porque você vai ficar horas trabalhando nisso. É como se fosse uma escultura que você faz com um martelinho, fica tirando as poeirinhas…
Às vezes têm situações também que você tem que ficar revendo materiais que estavam muito errados e que não eram originais. Você tem que ter todo esse discernimento.”
José Luiz Sasso e Alexandre Sobral ganharam o prêmio de Melhor Restauração de Som pela restauração de “Cabra Marcado para Morrer” no 7º Festival CineMúsica.
Para mais informações sobre restauração e preservação audiovisual, confira:
- Restauração Sonora: um estudo sobre técnicas para restauração e experiências realizadas no cinema. (por Sandro Dalla, 2013. Dissertação de Mestrado, USP)
- A Teoria de Cesare Brandi aplicada à Restauração de Som no Cinema Brasileiro. (por Joice Scavone, 2010. Trabalho de Conclusão de Curso, UFF)
- Blog Preservação Audiovisual de Rafael de Luna Freire.