Raul Locatelli e o som direto no cinema mexicano contemporâneo
A RUA – Revista Universitária do Audiovisual publicou recentemente uma entrevista realizada pelo colaborador Hugo Reis com o técnico de som direto Raul Locatelli. Segue a entrevista na íntegra:
Raul Locatelli é uruguaio, mas escolheu a Cidade do México para viver e exercitar seu ofício: técnico em captação de som direto. Adquiriu experiência na publicidade e hoje se dedica ao cinema, apostando em parcerias com proeminentes diretores do cinema mexicano contemporâneo. Entre os vários filmes nos quais trabalhou destacam-se Los Bastardos (Amat Escalante, 2008), Parque Vía (Enrique Rivero, 2008) e Luz Silenciosa (Carlos Reygadas, 2007). Este último, distribuído no Brasil pela Imovision, garantiu-lhe reconhecimento internacional após receber o prêmio de “melhor som” no Festival de Havana e no Cine Ceará: Festival Ibero-americano de Cinema. Nessa entrevista, realizada em seu apartamento na Cidade do México, Raul contou sobre suas experiências, seus procedimentos de trabalho, sua relação com a tecnologia e ainda sobre o pensamento sonoro de novos diretores do cinema mexicano como Carlos Reygadas e Amat Escalante.
por Hugo Reis*
Hugo Reis: Como começou a trabalhar com o som no cinema, com a captação de som direto, especificamente?
Raul Locatelli: Na verdade, nunca estudei o som propriamente dito, sou um estudante de comunicação social. Eu queria mesmo ser diretor ou fotógrafo, como todos vocês (risos)! Dirigia e fotografava trabalhos da faculdade, mas todos sempre queriam fazer produção, direção ou fotografia, e nunca havia ninguém que quisesse se encarregar do som. Então, lentamente, fui tentando melhorar o que se fazia, cuidando para que o som fosse o melhor possível durante a filmagem e consertando no protools tudo que fazíamos mal. Comecei a fazer o som de meus próprios trabalhos, também praticando em curtas e documentários de outros companheiros. Daí surgiu o interesse de fazer meu trabalho de conclusão da licenciatura sobre a estrutura sonora no cinema, quando me propus investigar a pouca bibliografia que existe sobre este ofício. Um ofício muito bonito, mas sobre o qual não há muita leitura – a bibliografia que existe sobre o som no cinema geralmente trata da música, como se o som no cinema fosse só a música, sendo que o compositor quase nunca acompanha sequer um dia de filmagem! Então estudei muitos livros, entrevistei técnicos de som direto uruguaios e fiz minha monografia, me formei e no dia seguinte decidi ir viver no México. Cheguei no México e a verdade é que menti! Disse às pessoas com as quais entrei em contato procurando trabalho que era técnico de som direto: mentira! Tinha uma ideia de como se poderia fazer mas nunca havia feito pra valer, mal sabia manipular os equipamentos, mas assim começaram a aparecer trabalhos. Em meu primeiro comercial fiquei quatro dias num hotel cinco estrelas para gravar o som. Passei toda a noite anterior conectando as coisas para ver se conseguia fazer tudo funcionar e… o comercial foi um desastre! Ligaram para a produtora pedindo que nunca mais chamassem esse uruguaio para fazer o som. E assim foi o segundo, o terceiro, o quarto e o quinto… até que conheci um pouco melhor o ofício e os equipamentos com os quais trabalhava, e enfim pude fazer um trabalho bem feito. Mas levou tempo. Nunca fui assistente, nunca fui operador de boom, sempre aprendi tudo sozinho, fazendo. Então, profissionalmente, comecei a trabalhar com o som há aproximadamente sete anos, quando vim morar no México.
HR: Alguns profissionais defendem o uso do som direto como proposta estética, frente a construções sonoras que apostam inteiramente na pós-produção. Como você vê essa questão?
RL: Acho que isso pode ser discutido eternamente. Não creio que exista no som – e em nenhum outro departamento do cinema – algo que esteja certo ou errado. Acredito que o cinema é algo que o ser humano criou para se entreter, para se divertir, para conhecer o mundo, para conhecer outras vidas e para pensar sobre o futuro ou para refletir sobre o passado, não é uma disciplina onde uma coisa está certa ou errada. O cinema é um campo onde se gosta ou não se gosta das coisas, ou se gosta um pouco mais de umas do que de outras. Filmes bem ou mal feitos são uma coisa muito subjetiva. Então acredito que, mais do que discutir sobre cinema – que é muito divertido, claro – há que desfrutá-lo. Não é muito relevante para mim, na verdade, o que está certo e o que está errado. É relevante o que eu gosto, e é relevante o que gostam os diretores com os quais trabalho, pois sempre trato de levar minha proposta de trabalho com o som para seus filmes. Não considero que minha forma de trabalhar seja a melhor, simplesmente acho que para cada projeto há um som, assim como há uma fotografia. Cada fotógrafo tem sua maneira de trabalhar, seu estilo, que vai funcionar melhor para um tipo de projeto do que para outro. Creio que com o som se passa o mesmo. Se o diretor se preocupa com o modo como seu filme vai soar, a escolha do técnico de som é tão importante quanto a escolha do fotógrafo. Para mim o som também é um elemento plástico, tanto quanto a fotografia. É um instrumento criativo.
Nos filmes de ação de Hollywood, por exemplo, seria impossível para um técnico de som direto fazer foley em locação. Não dá tempo, ninguém vai esperar, nem interessa como ficou gravado porque o som é feito quase 100% na pós-produção. Aí sim é irrelevante quem é o técnico, porque ele vai fazer o que pode, o que importa é a imagem. Nesse caso, todo o som é entretenimento e tudo tem que ser escutado perfeitamente, por isso trabalha-se com pós-produção. Mas o que nós fazemos é radicalmente diferente, nós buscamos naturalidade.
Acho que o som direto gera um processo inconsciente no espectador que faz com que ele seja tocado por uma verossimilhança muito mais concreta, porque traz essa “verdade”, o registro sonoro do que se vê. Estou convencido de que o som direto influencia a credibilidade desses filmes, eles afetam o espectador de maneira muito mais sólida do aqueles que têm o som feito todo na pós-produção, com foley e dublagem de diálogos.
HR: Poderia falar um pouco sobre como se dá sua relação de trabalho com diretores como Carlos Reygadas e Amat Escalante?
RL: Bom, como diretores eles não têm nada a ver um com o outro. Têm estilos com pontos de conexão porque tomam decisões parecidas em certos momentos, mas pessoalmente são totalmente distintos. Com Amat fiz dois filmes: Sangre(2005) e Los Bastardos (2008). Também fiz o curta dele no projeto Revolución (segmento “El cura Nicolas colgado”, 2010). Ele é um diretor muito crítico mas ao mesmo tempo muito tímido como pessoa. Meu primeiro filme foi também o primeiro filme dele, o que faz nossa conexão muito importante. Considero-o um irmão porque nós dois nascemos para o cinema no mesmo momento. Ele teve que ir aprendendo como fazer seu filme no próprio trajeto, enfrentando desafios muito importantes, com decisões importantes para tomar pela primeira vez em sua vida, e eu também. Hoje ele já está muito acostumado ao modo como eu trabalho e geralmente quem tem que se adaptar é o fotógrafo e sua equipe.
Mas o que Amat busca, na verdade, é o mesmo que Carlos busca para seus filmes. Eles têm a particularidade de trabalharem com atores não-profissionais, o que torna muito mais importante – e aí a influencia da minha forma de trabalhar – o momento da atuação, quando se está dizendo algo. Se um diálogo não soa bem, ou não se entende, o ator profissional pode repetir a fala exatamente igual na tomada seguinte, porque ele tem uma memória que trabalha dessa maneira, treinada para isso. O mesmo se dá com as ações: se você pede a um ator que repita a ação, ele vai se lembrar de onde parou, em que momento, quantos passos deu. É outra coisa. O ator não-profissional não conhece o roteiro e a única coisa que sabe é que tem que se mover de um lugar para outro e dizer, por exemplo: “estou cansado e quero ir dormir”. Uma vez feito, ele já não se lembra de quantos passos deu, como disse, que cara fez. Não se lembra porque é uma pessoa que não está acostumada a memorizar sua gestualidade, sua forma de falar, sua entonação. Ele simplesmente é. Não está pensando em como se vê, não está preocupado com o tipo de coisa que um ator profissional normalmente está preocupado. O ator não-profissional simplesmente vive a situação, ele não tem nenhum método, não fez academia, não tem memória de ator. E nós temos que estar prontos para captar o que ele fizer em sua atuação o melhor possível, porque se falhamos a tomada não é boa, não é um bom plano.
Uma particularidade que esses dois diretores compartilham é esse trabalho com não-atores. Outra é a preparação dos filmes. Com eles, eu geralmente tenho uma conversa prévia de roteiro, só para o som, onde trato de colher toda a informação necessária sobre como vão filmar esta ou outra situação complicada para os atores: se são planos gerais (geralmente os mais complicados para nós), ou como é a linguagem de tal sequência. Por exemplo: se é um único plano na sequência, aberto, onde se passa toda a ação, ou se, ao contrário, é um plano aberto mas depois a mesma ação e os mesmos diálogos serão filmados em plano médio, plano/contra-plano e etc.. Depois, tenho que saber bem que tipo de microfonação querem: baseada nos microfones direcionais, super natural, com muito ambiente, ou se querem manter permanentemente um lapela, porque querem essa proximidade, porque querem que o personagem, ainda que se encontre a 50 metros da câmera, seja escutado bem próximo de nós. São decisões estéticas e podemos fazer qualquer uma das duas mas, dependendo do filme, vamos empurrar a que seja a mais natural possível. Eu não gosto dos microfones de lapela, não gosto do som que eles têm, mas, às vezes, tecnicamente é preciso usá-los como mais uma opção para garantir o som de um personagem que se movimenta muito, ou que tem ações imprevistas, seja ator ou não-ator.
HR: Em que medida o trabalho do técnico de som direto deixa de ser puramente técnico, preocupado com a inteligibilidade ou a limpidez dos diálogos, e passa a ser algo também criativo?
RL: Da forma como eu trabalho, podem surgir em determinadas situações propostas que poderiam ser chamadas de “artísticas”. Mas, na verdade, o verdadeiro artista é o diretor. Eu acho que o técnico de som pode se considerar parte do grupo de artistas mas, no momento da captação desse documento sonoro, creio que se pensa mais na perfeição técnica. Talvez quando eu tiver 60 anos e me fizerem outra entrevista eu pense de maneira diferente, pode ser que eu tenha os conceitos técnicos tão afinados que possa começar a pensar em questões artísticas.
Hoje, acredito que em meu trabalho, a decisão mais próxima que se pode ter nesse sentido, e que é uma decisão muito importante – a qual se toma junto com o diretor e para a qual se pede o consenso do técnico de mixagem – passa pela consideração estrita do que é o plano sonoro em relação ao plano visual. Proponho, na maioria das vezes, que o plano sonoro siga estritamente o plano visual. Quer dizer, gosto que o som seja escutado pelo espectador como se ele ouvisse uma situação da mesma perspectiva que a lente lhe dá no plano da imagem. Quero que se escute mais a natureza ao redor, que se sinta o ar do plano aberto proporcionado pela lente grande angular, onde se vê o céu, o pasto, as árvores com suas folhas se mexendo. . Quero que se ouça um pouco dos passos também, mas, se naturalmente, a essa distância que estou da câmera não os ouço, prefiro que no filme não se ouça. Obviamente que depois vou pedir tempo e cobrir um pouco mais o som do ator caminhando para que o técnico de mixagem, se quiser, coloque o som dos passos um pouco mais alto, dando ao espectador um pouco mais da presença do personagem, mas não vou botar um lapela. Se chego perto do personagem e ele vai começar um diálogo ou uma ação, e estão filmando com uma lente 50mm, com o personagem a 3 metros de mim, aí sim, vou querer que o som produzido por sua ação, sua voz, se sinta mais próximo. Ao olhar pela câmera, necessito dessa proximidade sonora. Por quê? Porque como ser humano, com meus sentidos naturais, perceberia o som assim. Então, esse poderia ser um conceito estético: seguir o plano visual.
HR: Nesse sentido, acha possível pensar em uma intenção narrativa em função da materialidade do som, pensando aqui em timbres e texturas, por exemplo?
RL: O que nós fazemos é gerar a matéria-prima para que depois o filme seja mixado, na maioria dos casos, por outra pessoa. Se eu começo a mexer no som para lhe dar uma personalidade, equalizando ambientes, diálogos ou locação de acordo com quem fala, estou apenas limitando o trabalho do técnico de mixagem, excluindo possibilidades e amplitudes de frequência da mixagem. Tento trabalhar em equipe com o técnico de mixagem: conversar com ele antes, seja lá quem for, explicar minha forma de trabalho e escutar seu lado também, procurar saber quais detalhes ele gosta de trabalhar melhor ou suas sugestões para o filme, de modo que eu seja simplesmente um gerador de matéria-prima nas melhores condições possíveis e que ele tenha para cada tomada primeiro: diferentes opções de microfone, muito material para reconstruir sequências ou para melhorar certos momentos; segundo: certos ruídos (uma porta, o tráfego e etc.) e, ainda, o som com a menor intervenção possível. Diga-se de passagem que meu equipamento de som direto não permite equalização de sons, apenas o que se chama de low cut, que corta algumas frequências graves eventualmente indesejáveis. Assim, registro o som o mais neutro possível, para que depois o técnico de mixagem (que é outro artista, junto com o diretor), com tempo, escutando num estúdio de verdade e com muito mais variáveis de análise do que eu posso ter com meus fones de ouvido no set, possa fazer o que quiser com isso, podendo dar a personalidade que se queira ao som.
HR: Você costuma acompanhar a edição depois, conversar com o editor de diálogos ou outros profissionais do departamento de som?
RL: Não. Geralmente o técnico de som direto, depois que entrega o material, não costuma voltar a se envolver, nem sequer volta a opinar, um pouco por uma questão de ordem e disciplina de trabalho. O que eu costumo fazer é tentar ir à mixagem para ver como soa o filme, mas tento não fazer nenhum comentário, pelos menos não no momento. E além disso, acho que é uma parte do trabalho em que o técnico de mixagem tem que se entender muito bem com o diretor, afinal é ele quem decide como deve soar seu filme.
Atua-se quando as coisas estão acontecendo, no momento do registro, depois já não se pode fazer nada. Acho que o momento de opinar sobre o som é o momento em que se está gravando, que é de sua responsabilidade. Depois é deixar as pessoas trabalharem em cada caso. O filme sempre é do diretor. E tem que soar e ser visto como o diretor quer. Acho que é o melhor para todos os técnicos e para o filme. Se um filme não tem coesão de linguagem, não tem personalidade.
HR: Como você vê a contribuição de tecnologias como gravadores multipistas, novos microfones e etc.?
RL: Creio que o avanço da tecnologia, do ponto de vista do som direto, foi muito importante nesses últimos anos. Hoje em dia só posso fazer o som que faço porque a tecnologia me permite. Em primeiro lugar, por causa das baterias. Antes o som tinha que estar o tempo todo ligado na rede elétrica, hoje temos equipamentos que te dão muita autonomia. Com duas baterias se filma o dia inteiro. Isso também te dá muita agilidade para se mover e mudar de configuração rapidamente.
Sobre os gravadores multipistas: em todos os filmes que fiz com Amat Escalante e Carlos Reygadas, por exemplo, usei sempre duas pistas. Na primeira colocava um microfone direcional, porque tem que ter sempre um microfone totalmente limpo. Na segunda podia ter outros microfones, o que no meu caso acontecia sempre (colocava outro microfone idêntico ao primeiro, com o mesmo zeppelin, tudo igual), mas tudo o que eu queria adicionar tinha que mixar. Se tinha lapelas, tinha que mixá-los, o que não é o melhor, porque o ambiente é multiplicado por dois: dois microfones ao mesmo tempo, no mesmo canal, fazem com que a voz que se escuta em um microfone se escute no outro também, sem poder separar. Enfim, muitos problemas. Agora trabalho com quatro pistas, o que é muito positivo porque posso ter mais microfones limpos. Ou seja, posso dar mais opções de microfone à mixagem para fazer o que queira. E trato sempre, quando tenho as quatro pistas, de ocupá-las com microfones em diferentes posições, para que o técnico de mixagem possa variar de uma posição a outra, acompanhando a posição do ator em relação ao enquadramento. Lógico que, se tenho um plano super fechado de um ator, não vou usar quatro microfones – coloco um bem perto, porque tenho com esse microfone a posição ideal e não há nada visível no enquadramento que necessite outro microfone em outro lugar. Mas, em situações normais, sempre trato de ocupar todas as pistas.
HR: Disse que utiliza microfones estéreos também, de que maneira costuma usá-lo?
RL: Na realidade, para os diálogos e sons específicos o microfone é sempre mono. O estéreo que eu trabalho é o MS, é uma tecnologia que te dá a sensação de três microfones: um frontal, um para um lado e um para o outro. MS significamid side: o material que está gravado no canal 2 se duplica, como num espelho; na pós-produção se inverte a fase, um se configura para a panorâmica da esquerda, outro para a direita e o do meio, o mid, permanece no centro. Antes isso se fazia colocando um cardióide no centro, e dois microfones formando uma figura de 8 para os lados. Na sala de cinema, o que isso faz é abrir o espaço sonoro e te dar a sensação de que, se alguma coisa cruza o quadro da esquerda pra direita, o som também cruza a sala, da esquerda pra direita. Então há um ganho enorme de sensação espacial. Não uso para os diálogos, uso somente para ambientes amplos, para que se tenha uma sensação espacial um pouco mais rica. Se há locações muito bonitas para fazer MS, por exemplo, um campo ou uma praia, posso fazer toda a sequência só com ele, tudo no mesmo nível, tudo na mesma posição para que fique emparelhado. O MS soa muito bem.
HR: Voltando aos filmes. Pode falar um pouco mais sobre seu trabalho em Luz Silenciosa?
RL: Basicamente, Luz Silenciosa é um filme em que Carlos Reygadas buscou a naturalidade, simplesmente queria que o som parecesse ao que é, o mais natural possível. Mas, em algumas sequências, o que se ouve não foi gravado no mesmo momento da imagem, porque por algum motivo era impossível realizar. Por exemplo, a sequência em que Johan (o protagonista) sobe um morro, onde se vê apenas seus pés caminhando, e que termina na saia de Marianne, antes de cortar para um dos beijos mais bonitos que eu já vi no cinema. A câmera, nesse caso, acompanhava de muito perto os pés do personagem, e tinham cinco pessoas atrás da câmera. Então, o som dos passos do ator se misturava com o som dos passos dessas cinco pessoas. Eu tentava fazer um bom som com o aéreo, mas não dava. Por isso decidi fazer algo diferente. A solução que encontrei foi me afastar uns 50 metros, me colocar paralelamente ao movimento de subida do ator, e quando ele começasse a caminhar, eu o seguiria com os olhos, gravando meus próprios pés, tentando pisar no mesmo ritmo dele: foley ao vivo, sincronizado. Depois o que fiz foi gravar muito material extra caminhando: pés na grama, na pedra e etc., para que se conseguisse montar bem a sequência. O que o técnico de mixagem fez depois foi pegar o som desses passos que eu gravei a 50 metros e arrumar o ritmo de cada um, ou colocar o som dos passos na pedra quando havia pedra – som gravado nesse mesmo lugar, com o mesmo microfone, no mesmo nível. Quando você vê o resultado final dessa sequência, parece realmente real, mas às vezes é necessário fazer algumas coisas para conseguir essa naturalidade. Às vezes temos que usar a “magia” do cinema!
HR: E sobre o uso do som fora de campo? Me chamou atenção a sequência em que Johan e seu pai saem para ver a neve…
RL: Se há um ser humano falando, sua atenção sempre vai estar com esse ser humano falando. Se você não vê um ser humano falando, seu olho se desvia para outras coisas. Sua atenção vai estar em outras coisas e isso é um instrumento criativo e narrativo para dirigir os olhos do espectador. No caso desse plano, creio que o diretor quis mostrar como é esse lugar no inverno, a sensação de solidão absoluta, aquela neve interminável. É simplesmente uma questão do espectador contemplar a sensação do que é o inverno, abrir um porta e ficar contemplando o branco, de aproximar o espectador dessa sensação o máximo possível, sem perder o conteúdo que se tem nos diálogos dessa sequência, que é quando Johan conta ao pai que está apaixonado por outra mulher e que não sabe o que fazer. Essa sensação não seria alcançada se o diretor ficasse com as duas pessoas falando normalmente. Aliás, nesse plano em particular, essa estratégia (das falas fora de campo) foi muito providencial porque os diálogos tiveram que ser dublados. É uma sequência com steadycam, diretor, primeiro assistente de câmera e certamente um segundo assistente levando a bateria. Há o som dos passos de todos na neve, e não dá pra usar. Então foi preciso reconstruir isso e foi muito melhor para os diálogos o fato de não ter em quadro muito tempo de sincronismo labial, de modo que o espectador não possa perceber.
*Hugo Reis é mestrando do Programa de Pós-graduação em Imagem e Som da UFSCar e atualmente dedica-se aos Estudos sobre o Som no Cinema
Publicação original: Raul Locatelli e o som direto no cinema mexicano contemporâneo.