Entrevista com o mixador Paulo Gama: Parte I
Em dezembro do ano passado estive com o mixador Paulo Gama para um bate papo que rendeu uma entrevista aqui para o site. Dentre os últimos trabalhos do mixador paulistano estão os filmes O Palhaço (Selton Mello, 2011), Bruna Surfistinha (Marcus Baldini, 2011) e Trabalhar Cansa (Marco Dutra e Juliana Rojas, 2011). Pela extensão da entrevista, vou partilha-la em II posts.
Artesãos do Som: Vou começar com uma pergunta clássica pra você ir aquecendo. Conte sobre sua trajetória pessoal com o som e o cinema?
Paulo Gama: Começou lá pelos idos de 1996… 1997. Minha irmã trabalhava com produção de publicidade e eu fui fazer um estágio com ela durante um ano. Não aguentei muito e pedi demissão. A gente brincava que o trabalho era de “bombeiros do inferno”, apagar incêndio o tempo inteiro. Algum tempo depois minha mãe, que é escritora de livros, foi convidada por um primo meu que tem um estúdio, para fazer um audiobook. Como era um primo que eu não via fazia tempo, minha mãe me chamou para ir junto. Esse meu primo era sócio da Miriam Biderman na época. Fazia duas semanas que eu tinha saído do trampo de produção. Foi engraçado porque quando eu cheguei lá, um dos técnicos tinha acabado de ir embora e eles não tinham contratado ninguém. Eu não sabia nada, mas tinha esse lugar vago. Aí eu aprendi rapidinho a mexer no Pro Tools e já comecei a trabalhar com edição de som. Fazia muita coisa errada, mas fui meio que ocupando… fazendo rodízio com o pessoal que cuidava mais da parte de cinema. Já era o Ricardo Reis “Chuí” que trabalhava lá. E no final deu certo. Fiquei uns três anos com eles. Fiz alguns filmes: Castelo Ra-Tim-Bum, Gêmeas, Cronicamente Inviável. Eu reconheço o quanto tem de sorte na minha carreira, por exemplo: o primeiro lugar que eu sentei pra trabalhar foi com a Miriam.
Saí de lá em 2000. Depois, trabalhei em duas produtoras de som pra publicidade. Não me dei muito bem com o esquema da publicidade, pedi demissão e fui falar com o Beto Ferraz. Não conhecia ele, mas ele trabalhou com meu pai que também era técnico de som. Eu conversei com o Beto e ele acabou me passando um trabalho de operário do áudio. O som direto tinha sido gravado sem time code, só com a ABS e sem mapa, sem nada. Então, precisava passar todo o bruto do som direto do DAT pro Pro Tools, e sincronizar claquete a claquete com as fitas telecinadas do negativo. E era umas 40 horas de material. Só o tempo de copiar as fitas e sonorizar as Betas… demorou umas três semanas pra fazer. Depois, o Armando tava mixando o Benjamin e o Carandiru ao mesmo tempo, ele mixava um de dia e o outro de noite. No Carandiru só fazia as pré-mixes mas mesmo assim era muito trabalho, então ele precisava de um assistente pra ficar preparando as sessões e me chamou como freelancer pra trabalhar. Acabando esse período fui contratado para trabalhar como fixo. Dei sorte de novo. Fui cair aonde? No Mega, trabalhando com o Armando antes dele ser o “mixador das estrelas”. A gente trabalhou uns cinco ou seis anos juntos… de 2002 a 2007 ou 2008. Eu fiquei um ano trabalhando como assistente dele e depois virei o técnico de som da madrugada. Tinha tanto trabalho naquela época que tinha três períodos. O Armando ficava das 9h às 18h, depois o Pedro Lima que ficava mais ou menos das 18h à 01h da manhã, e eu que entrava a 01h e ia até a hora que fosse… variava muito esses horários, mas no papel era meio que isso. Era até engraçado porque eu fazia faculdade de história a noite. Eu chegava na faculdade às 19h, saía de lá e ia trabalhar. Eu mixava uns curtas e cuidava mais da parte de engenharia, fazendo as instalações nas máquinas, cuidava dos Pro Tools… Quando chegou o Dolby E no Mega, por exemplo, eu que fui lá descobrir como que funcionava, lendo os manuais, instalando os equipamentos etc.
Eu saí do Mega depois disso e fui trabalhar com o Beto Ferraz numa série que chamava Pedra do Reino do Luiz Fernando Carvalho. Nós ficamos uns 10 meses editando e mixando de tão complexa que era a série. O Armando que começou a mixar, mas ele ficou doente no meio do processo e me chamou para ajudar. O diretor acabou gostando do meu trabalho e me indicou pro primeiro longa que eu fiz sozinho: Feliz Natal do Selton Mello. Daí pra frente foi entrando mais trabalhos e dando certo…
AS: E sua carreira como músico?
PG: Eu sempre gostei de música. Quando eu era garoto, tocava clarinete na orquestra do colégio. Depois fui estudar piano. Estudei com a Silvia Góes, depois no CLAM e em um conservatório. Depois segui por conta própria, li alguns livros… tipo aquele “Harmonia” do Schoenberg. Minha mãe fazia umas animações também, e eu fazia as trilhas pra elas.
AS: E quando você começou a mixar lá na JLS?
PG: Eu trabalhava muito de freelancer no Mega em projetos que eles me indicavam e em outros que eu leva pra lá também. Aí, o André Tadeu começou a mixar lá no Mega… e depois veio o Carlos Paes também… e eles ficaram fixos lá. Por coincidência, nessa mesma época o Zé estava abrindo uma sala nova, o Estúdio 1, e fui mixar lá. Pra mim foi um encontro muito fortuito. O primeiro filme que fiz, se não me engano, foi Do Começo ao Fim, em 2009. E eu acabei mixando também o primeiro longa-metragem do estúdio novo em 2010, América. É um longa que é muito bom, mas não sei por quê que ainda não lançou aqui no Brasil. Teve o Eu e Meu Guarda-Chuva também…
Uma coisa muito boa dessas mixs na JLS foram as materizações no estúdio 3, que é analógico. A gente, eu e o Zé Luis Sasso, masterizavamos em analógico, usando os equalizadores da mesa, alguns compressores do rack e realmente… a resposta do analógico é bastante diferente. Não é que ela é superior, mas tem outra sonoridade. Pessoalmente, eu acho que pra masterização a resposta do analógico é superior. A vantagem do digital é o que? É o full automation, você automatiza tudo o tempo inteiro. No analógico… na mesa Cinemix, que é a do Estúdio 3, você mexeu no equalizador… aí ele fica parado. A vantagem do digital é a automação total.
AS: Mas a Cinemix não é parcialmente digital?
PG: O controle dela de automação é digital, mas todo o processamento de áudio é analógico. São moving faders e a automação de volume funciona por VCA (Voltage Controlled Amplifier).
AS: Você trabalhou com dois grandes nomes da mixagem pra cinema no país, o Armando e o Zé Luiz Sasso. Eu gostaria de saber quais as influências disso no seu trabalho.
PG: Eu sempre tive muitas boas oportunidades na minha vida, e essas são duas grandes delas. O Armando meio que me adotou como técnico de som, ele me indicou e me indica pra muitos trabalhos. Tecnicamente eu aprendi muita coisa com ele, mas o principal foi com a postura. Ele é um cara muito correto, justo e tem um trabalho muito sólido.
Quanto ao Zé, eu aprendi muito do universo analógico. Quando comecei na Miriam, já era Pro Tools. Eu trabalhei em ADAT quando gravava trilha pra comercial, mas já era digital. Então, com o Zé entendi melhor esse universo, as diferenças de resposta… Eu trabalhei muito pouco lado a lado com eles… Considero que o Armando me influenciou um pouco mais do que o Zé, inclusive por uma questão de tempo. Minha escola é a do Armando. Eu mixo da forma como ele faz. Mas eu também tento ver como é que o Zé faz pra tentar assimilar coisas muito boas para meus processos de trabalho.
Meu sonho de consumo é ter um rack analógico com seis equalizadores monos, um para cada canal do 5.1, um compressor SSL 5.1, uns três De-Esser pra poder usar distintamente nos stems… mas um rack desses deve custar uns 40 ou 50 mil…
AS: Você já fez som direto?
PG: Já fiz duas diárias de som direto na minha vida. Mas realmente, tenho que reconhecer que fazer microfone não é pra qualquer um não. Não é um trabalho nada fácil. Toda vez que um som sai de eixo… a não ser quando é uma “panguada”, eu evito reclamar. Esta é a grande lacuna da minha formação a gravação. Eu sei fazer uma gravação razoável, mas não é a minha especialidade. Eu conheço os conceitos, já li sobre o assunto, mas eu não tenho tantas horas de vôo como eu tenho de edição e mixagem. Porque no final, é isso que é a experiência. O quanto você já fez daquilo. Eu acredito que em qualquer profissão o que determina se o cara é bom ou não, é o quanto ele domina o bom senso. E esse é o grande lance do som, o quanto você domina… saber ouvir e saber se está bom ou ruim. Pode parecer algo óbvio, mas não é. E esse conhecimento eu não tenho na gravação… esse bom senso da prática.
AS: Eu perguntei isso porque já me deparei com questões do tipo… técnico de som direto que desconhece como é realizado o processo de finalização de som, mixador que desconhece os desafios do som direto, etc.
PG: Eu acho que isso não é simplesmente uma questão da formação das pessoas da nossa área. Isso é uma herança. Repara nos nossos técnicos de som… tem uma lacuna nas gerações. Você tem técnicos de som como o Zé, que tem seus 60 anos, e depois vem a minha geração… da Miriam e o Ricardo… de seus 40 anos pra baixo. Tem 20 anos que não tem ninguém. Mesmo essa geração dos 40 tem pouca gente. Você tem a Miriam, o Ricardo Reis, o Beto Ferraz, o Luiz Adelmo, o Edu Santos Mendes que é um pouco mais velho… Eu acho que isso tem a ver um pouco com o Plano Collor…
AS: tem o pessoal do Som Direto também né?
PG: O pessoal do Som Direto sobreviveu porque eles fazem publicidade. Mas eu falo mais da pós-produção. Junta isso com o fato de no Brasil não ter uma escola formada de som. “Eu aprendi com não sei quem, que aprendeu com o fulano, que aprendeu com o outro lá”, que se você for fazer a raiz, aprendeu com o cara que estava gravando um som ótico em 1930. Não tem isso. Você tem uma geração nova. Eu acho que a grande geração de profissionais de som vai ser a próxima que terá uma formação mais completa que a nossa, vão ter uma escola mais sólida.
O meu conhecimento de Som Direto deu uma melhorada quando eu fui pra Cuba. Lá eles valorizam muito o som. Conversei com muitos bons técnicos lá. Tem uma mexicana que chama Isabel… não me lembro o sobrenome, mas ela é muito boa…
AS: Como foi a sua experiência na EICTV em Cuba?
PG: Foi muito legal. O curioso foi ver o quanto o som é respeitado lá. Você chega como assessor de som e é uma pessoa importante, e isso me causou uma surpresa logo de cara. O som é super levado a sério. Mas o mais marcante foram as pessoas e as experiências de convivência em Cuba mesmo. A primeira vez eu fui como assessor de som de um exercício do segundo ano. Os alunos vão editar e mixar um curta de 10 minutos e você fica lá orientando. Na segunda vez eu fui pra mixar mesmo. Era um exercício do primeiro ano de 3 minutos mas mixado por um técnico de som mesmo.
AS: Como mixador você já trabalhou com vários supervisores e editores de som aqui de São Paulo. Cada um com sua forma de pensar o som. Como você analisa seu trabalho lidando com essa variedade de pensamentos?
PG: O editor ou o supervisor de edição de som já vem com o som pensado antes da mixagem. O mixador de certa forma trabalha para o editor de som. Por mais que não exista essa hierarquia, o mixador tem que trabalhar a serviço do editor de som. Ele é o cara que de certa forma concebeu o desenho de som do filme. O mixador seria equivalente a um operador de câmera, ou algo do tipo. O que eu tento fazer é ser o mais versátil possível. Tem algumas características que são próprias do mixador, por exemplo, o timbre de voz que você usa, talvez a espacialização que você faz na música… mas de certa forma você precisa saber imprimir a personalidade do profissional que faz o desenho de som. Saber imprimir a proposta do cara. E é importante você ter esse jogo de cintura, saber ser versátil.
AS: Você trabalhou em algum projeto que você foi contratado na pré-produção pra pensar o som do filme como um todo?
PG: Não, nunca passei por essa experiência. No Brasil e mesmo fora dele penso que são poucos os diretores que realmente dominam o uso do no filme. Pra mim, um grande exemplo de sound designer é o Playtime do Jaques Tati. É um filme onde o som está imbricado na narrativa. Não é apenas uma coisa do tipo… “olha só como ele contou aquilo com o som!”. As coisas não se separam. E isso pra mim é o grande momento do cinema, quando tudo se junta e cria uma imagem poética, uma poesia. Não é um momento em que o som brilha, é um momento onde tudo está junto em uma coisa só, inseparável.
Eu acho que não é nem um problema exclusivo do cinema brasileiro, é um problema universal. Se você for pensar essa questão do som pra cinema… se debate muito por exemplo: quem que leva o som a sério, quem não leva? Exemplos de filmes onde o som é importante, onde não é? Onde o som é narrativo ou não? A sensação que eu tenho assistindo cinema é que o cinema ainda é uma arte bebê. O cinema tem lá seus 100 anos. A literatura, se você for pegar, sei lá… tem 3000 anos. É claro que não da pra tomar a idade por tudo, mas na literatura se foi feito muito mais experimentações do que no cinema. Isso sem sombra de dúvida, é inegável. Ou mesmo na música. Se você for pensar… pra chegar no Schoenberg ou no Stravinsky, você tem toda uma tradição. Stravinsky está dialogando com 400 anos de música. Ele não tirou aquilo só da cabeça dele. É aquela frase do Newton: “Se eu enxerguei mais longe é porque eu estava em cima de ombros de gigantes”. Então eu acho que o cinema é uma arte bebê, é uma arte que ainda está construindo seus alicerces. Não é uma arte que já chegou no seu limite. É uma arte muito tributária da música, da literatura. Você assiste um filme e fala: “Ah, esse filme é boa literatura” ou “esse filme tem uma boa música”. São poucos os filmes que você assiste e que são realmente som e imagem imbricados em forma de uma peça única, uma peça cinematográfica.
Pra mim, o primeiro grande exemplo dessa vertente que eu estou falando é o Fantasia do Walt Disney. Eu gosto muito da Trilogia Qatsi e do Baraka do Ron Fricke. Isso pra mim é mais do que experimentalismo. Eles conseguiram achar uma forma estritamente cinematográfica. Você assiste Koyaanisqatsi, tem uma narrativa… mas é uma narrativa que é um fio. Se você desatentar um pouco ou assistir uma vez só, você não vai nem saber que tem uma narrativa ali… você nem percebe. Parece só uma sequência de impressões.
Eu acho que o som entra no bojo dessa arte que ainda está construindo seus paradigmas. Não da pra gente achar que o cinema é só comédia romântica, filme de ação, terror… só cinema de gênero, como é chamado. Achar que isso é realmente o que é próprio dessa arte. Eu acho que é uma fase… que é importante se fazer muito disso. Porque dentro da arte você precisa esgotar a possibilidade, para que a nova possibilidade surja. Então, eu acho que a gente está nesse momento de esgotar esses formatos. Porque duas horas? Porque esse tamanho? Começou lá com o Griffith no início do século passado… eu não sei exatamente as balizas temporais…
E você tem ainda a questão de atrelar isso a muitas mídias. Você compõe uma coisa que é feita pra você assistir em uma sala grande escura, e depois você precisa passar isso em uma televisão, com o cachorro latindo, o vizinho gritando… Aonde isso é uma peça diferente, aonde é a mesma coisa? Tem filmes, por exemplo, do Fellini… Fellini pra mim é inassistível na televisão. Primeiro, os quadros são super abertos e você não consegue ver o que está se passando, você precisa estar concentrado ali pra acontecer… Ou então, no outro extremo temos Olga que é um filme muito atrelado à linguagem da televisão com planos muito fechados. O Jayme Monjardin é um diretor que veio da de televisão. Não existe um valor absoluto, nenhum dos dois estão certos, mas cada um se adapta melhor a uma linguagem diferente.
Pros filmes mais “água com açúcar”, ação, terror… os filmes de gênero, essa transição é mais fácil. Mas para um filme que pretende ser uma obra de arte, uma obra que está discutindo a sociedade, que está dialogando com seu tempo e tem um olhar crítico sobre isso, a coisa é mais complicada. A estética da obra muda quando você vai para uma tv, ou vice e versa. É possível também fazer arte pra televisão. Não é essa a questão, mas ela vai ser algo diferente em cada mídia.
Entrevista com o mixador Paulo Gama: Parte II