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Nov 7 2014

Sonoridades no Cinema Brasileiro: Márcio Câmara e o som de “Cinema, Aspirinas e Urubus” – PARTE III

SONORIDADES NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO ESTUDOS DE CASO E PROPOSIÇÕES_Márcio Câmara

Seguindo adiante com a última parte da entrevista com Márcio Câmara sobre sua experiência na realização da captação de som direto do filme “Cinema, Aspirinas e Urubus” (Marcelo Gomes, 2005), segue a terceira e última parte.

PARTE III) Panorama atual da figura do profissional de som no mercado audiovisual.

Guilherme Farkas: Qual a sua relação com a pós-produção?

Márcio Câmara: Eu sinto muito… Outro dia eu estava na palestra do Chris Newman [1] (durante o festival do Rio de 2013) e ele sempre fala a mesma coisa, quanto mais você enquanto técnico de som conseguir ir na edição de som, mixagem melhor. Mas a gente nunca consegue… E volto a dizer, eu tenho feito essa pergunta para diversos técnicos de som direto aqui do Rio de Janeiro e todos eles se queixam da mesma coisa. Que não tem feedback, ou se tem é somente quando tem algo errado quando acha que o som está ruim. O máximo que acontece é o produtor, já conversei com a Sara Silveira que ela acha ótimo o som. Mas não tem uma interação. Esse pessoal da pós parece que vive dentro de um mundo autista. E volto a dizer, parece que a criatividade… Outra coisa que eu disse, sobre a revista Filme Cultura n.58 (O Som Nosso de Cada Filme). A única vez que o técnico de som direto é citado é pelo Alessandro Laroca dizendo que o técnico de som acha que o que ele escuta na sala de cinema é o som direto puro. O único momento que o técnico de som é citado! Ele está dizendo que o técnico de som acha que o que vai para a sala de cinema é o som sem todo o processo de edição e pós produção de som. Não sei que esteriótipo mais generico é esse de achar que existe essa figura do técnico de som com essa ingenuidade. Então assim, são coisas que eu sinto e vejo muita gente reclamando. Para você entender o seu processo, aquela coisa do empirismo, você para de ser empírico quando você vê os resultados, fiz assim e o resultado foi assado. E quando você tem uma relação, o filme ganha… Por exemplo, quando fui fazer A Ostra e o Vento, fiz milhares de ambientes, milhares de coisas, o Wagner Tiso tinha feito várias inserções musicais para certas coisas do filme, o Walter (Walter Lima Jr., director do filme) acabou tirando, e vendeu a ideia para o editor de som de que era mais interessante utilizar os ambientes que eu gravei… Mas isso porque ele parou, escutou, de acordo com todo o mapa de som que eu tinha feito e tomou a decisão. Tanto é que o filme começa com um ambiente que eu gravei, que eu bolei na minha cabeça, de colocar um microfone de lapela dentro de uma concha. Coisas assim que o filme ganha muito. Das vezes que eu pude fazer, por exemplo, num filme chamado Elvis e Madona (2010, dirigdo por Marcelo Laffitte) que eu fiz som direto. O filme ficou parado dois anos entre a captação e a pós-produção, nessa época eu tava me mudando para o Rio, e eu acompanhei, fiz toda captação de ambiência. Tinha um personagem que andava muito em moto, gravei muita moto, fui para Copacabana… que o filme se passa todo lá, gravei vários ambientes. E quando fui para a edição de som, todos esses sons já estavam todos lá. Fui então levando o filme até a mixagem. O filme tem uma pegada sonora muito distinta, tem muita música mas muita ambientação sonora. Então essa coisa da pós é sempre um mistério para mim.

G.F.: E quando você está gravando, em algum momento considera a possibilidade de dublagem? Ou se em determinado plano o diálogo não ficou bom, você grava a ação de novo mas sem câmera, só para o som, para depois levar para a pós? Gravação de ambiência, wild tracks?

M.C.: Faço muito. E volto a dizer, somente quando tenho respaldo do diretor e/ou produtor! Quando tenho algum tipo de reflexo, quando vejo que a pessoa está comigo e jogando junto. Que pode parar para fazer alguns passos, choro. Eu e a maior parte dos técnicos de som acha que a hora é aquela! Parou a ação, parou tudo? Ja fez quinze planos daquela ação? Então vamos gastar um minutinho aqui para pessoa andar daqui até lá, ou dessa caneta caindo no chão nesse piso nesse lugar, nessa hora do dia com esse ambiente que está aqui? Ah, não pode fazer? Então beleza, vamos embora… Muitas das vezes vai todo mundo para o almoço e fica eu e o assistente de direção fazendo só alguns sons que faltaram e que julgo necessário e que pode contribuir para o filme. Gasto meia hora do almoço mas garanto alguns desses sons. Mas que com certeza quando chega lá na edição de som e tem esses sons específicos, ajuda. O cara pode até pegar lá na biblioteca da BBC mas o som do set é outra coisa, outra espacialidade. Então eu sempre tento construir… Por exemplo, o outro filme que eu fiz, Deus é Brasileiro (2003, dirigido por Carlos Diegues), tinha um momento que o Antonio Fagundes (protagonista do filme) falava ao lado de uma cacheira enorme, nem que eu fosse o Chris Newman ia dar certo. Levo o Antonio Fagundes para duzentos metros distantes mas com uma ambiência ainda da cachoeira para fazer o diálogo só para o som e assinalo para pós que tem um take de som com a cobertura do diálogo no plano tal da sequência tal. Eu sou da escola… aprendi isso nos E.U.A, que você faz esse tipo de cobertura na hora, quando os atores estão lá com o texto na ponta da língua e não depois de três meses no studio quando o ator já está com outra cabeça. E acho também… não prezo que tudo tenha que ser oriundo do som direto não! Mas se você está lá filmando e estão quebrando a Perimetral [2], tem um diálogo super específico. Não tem o menor problema a dublagem… não vou perder o meu som por causa disso. Tudo é uma questão de comunicação. Nesse caso o diretor e/ou produtor tem que ser avisado que  ali naquelas condições específicas não dá para fazer som direto, não tem problema algum. O que não pode é você ficar se esquivando achando que tá fazendo um bom trabalho e não informando o diretor daquilo que ele vai saber depois de cinco, seis meses quando o filme chegar na pós… Já aconteceu comigo de me ligarem falando que tinha um ruído no som direto… Eu digo pois é! Não lembra não? Pode ver no material! As vezes eu deixo o som rodando com a voz do produtor/diretor falando isso “não, pode deixar esse ruído ai que depois eu resolvo!”. Por isso que a questão da comunicação é fundamental, tem que informar tem que compartilhar essas situações, não é um problema só seu, não é um problema do diretor mas é algo do filme todo! O técnico não pode ficar como um autista no seu cantinho só apertando botão, não é isso…

G.F.: Como se dá o processo de criação da captação de som no set de filmagem? De pensar o som direto enquanto processo de criação e experimentação.

M.C.: É exatamente isso que estou pesquisando no meu Mestrado na UFF. Eu acho Guilherme, que é uma construção da forma que você escuta… Por exemplo, quando a gente fala da minha marca como técnico de som direto, de querer colocar os personagens dentro de um espaço sonoro físico e diegético, essa é a criação! De criar essa possibilidade sonora para que esse espaço físico, esse silêncio, seja escutado. Ter essa sensibilidade de entender tudo o que está no papel (no roteiro) e como isso se transpõem para o campo do som, do som direto e consequentemente para o filme. São várias coisas, vários aspectos, e volto a dizer, nisso eu estou escrevendo minha dissertação exatamente sobre isso. Por que o trabalho do técnico de som é tão invisível, tão pouco reconhecido? Por que não existe uma sistematização no sentido de um entendimento maior se o som direto passa somente por um processo técnico ou se existe uma criatividade de fato? Tem muito a ver com o tipo de filme que você faz, com tipo de diretor e de você mesmo como técnico de som. Qual sua atitude em relação ao fato de que você foi contratado para fazer um filme? É só para apertar botão? É para você não se intrometer no set, não ser um problema? Aí eu volto sobre o que falei no início sobre o documentário, que nesse caso você está lidando com a situação como ela é. Tem que fazer o melhor possível mesmo com locação muito barulhenta, muito complicada, um caos total. Então nessa hora, utilizando das técnicas que você tem, do ouvido treinado ao longo dos anos e das experiências, você tem que garantir, fazer com que aquele som funcione e seja parte integrante do filme. Para mim, se eu conseguir resolver isso através dos filmes… Acho que fui fazer essa pesquisa de mestrado para me entender melhor enquanto profissional, porque essa invisibilidade me chateia. Eu acho que o ouvido é tão criativo quando o olho, agora a diferença dessa criatividade e quanto ela é explicada retoricamente colocada, isso é o grande desafio, ainda não conseguimos pular essa cerca. Nem sei se vou dar conta de fornecer essa resposta. Mas no meu trabalho eu dou conta através de uma sonoridade que acho que é entener um mundo como ele é, saber ler um roteiro sonoramente, de certa forma saber escutar o roteiro. E nessa condição de escuta, saber propor situações. E no documentário, volto a dizer, você grava tantas situações, tantas ambiências que isso me foi uma escola importante. De trazer para a ficção esse mundo do ambiente sonoro, de tentar construir ou ao menos propor isso para o campo fílmico, diegético… Por exemplo, no Mutum não tem uma música, é tudo ambiente que eu gravei! Então ali, o diretor de certa forma, consciente ou não, eu dei condições com meu trabalho, com os sons que eu gravei em locação, de que fosse criado um certo tipo de filme que muito dificilmente existiria sem tal sonoridade. Uma opção estética de criar através da ambientação sonora daquele lugar, um campo fílmico específico. Que não seja através de um acorde tal, de um instrumento tal, para levar a uma emoção X, Y ou Z. Acho que esses são os desafios, ter condições de fazer isso e de fazer funcionar.

G.F.: A última questão, queria saber como você vê o técnico de som direto no contexto do cinema brasileiro contemporâneo. Se é algo mais fluído, de não ter uma divisão estrita de equipe, ou se por outro lado a especialização enquanto carreira ainda é bastante forte.

M.C.: Eu acho que, especialmente quando você me pergunta o que é que distingue o Márcio Câmara do Paulo Ricardo do Jorge Saldanha. Houve uma mudança de paradigma em relação a formação e adentrou no mercado muita gente que teve condições de comprar um equipamento A, B ou C, especialmente os equipamentos ficaram menos mistificados no sentido da possibilidade de compra. Antigamente alguém tinha um Nagra e tinha que recorrer a essa pessoa ou ao CTAv [3], era um gravador que ninguém sabia direito operar a não ser o técnico de som. Hoje em dia o Zoom H4n [4] vai resolver, ou o Sound Devices [5] vai resolver, democratização total dos meios de produção. Mas ao mesmo tempo trouxe outros parâmetros expecialmente no que é a questão, hoje em dia quando você compra, hoje mesmo eu tava conversando com um amigo meu, antigamente você comprava um Nagra e um microfone direcional. Hoje em dia você compra o gravador com três ou quarto microfones de lapela. O lapela vira a marca sonora official. O que de certa forma permite, faz com que a sonoridade geral do lugar seja esquecida. O que faz com que o técnico de som direto seja, como disse o João Godoy [6], um cafetão de microfone. Porque na realidade, se o microfone tiver com problema de frequência, de interferencia de bateria, mas estiver soando, está ali, ta beleza. O que eu acho é que isso para uma nova geração, ao mesmo tempo não gosto do discurso de que no meu tempo era diferente, cada um vai ter o seu processo. Mas eu acredito, até pela questão da escuta, é legal você ser assistente durante alguns anos, para você escutar, ver métodos diferentes, você treinar sua escuta com microfones diferentes para dai ir formulando sua escuta. Então hoje em dia, tentando responder a sua pergunta, eu acho que tem uma geração importante nova que está surgindo mas que falta um pouco desse discernimento de escutar o mundo através do microfone aéreo. O que eu quero dizer é que a ordem do dia do lapela está tão patente que às vezes está formando profissionais que não tem compreensão de como o mundo soa. E nesse sentido também não tem um respeito com o silêncio, com o som do silêncio. Lógico que falando genericamente, na interlocução que tenho encontrado com outros técnicos, é que todos eles gostam de falar da questão da espacialidade do aéreo (microfone direcional) que é também como eles conseguem escutar o mundo  e fazer com que isso soe diferente ou de outra maneira. Mas acho que essa questão do barateamento da aquisição dos equipamentos deu um outro cenário, para o bem ou para o mal, não estou aqui para dizer que tem que ter Zoom H4n, que tem que ter Cantar-X [7] porque cada um vai ter sua função, muito tempo fora (nos E.U.A de 1980 a 1997, aproximadamente) eu tinha outro acesso a equipamentos e esses equipamentos duravam dez anos. É diferente de comprar um Zoom H4n hoje que não se sabe quanto (pouco) tempo ele vai durar mas que pelo preço dele ele vai resolver um problema pontual, eu inclusive tenho um que gravo ambientes na mão, pessoas na rua, ele tem uma especificidade, não descarto. Não acho que é um Tectoy que todo mundo pega um martelo e quebra, acho meio besteira essa vilanização. O discurso complicado é “estou lá… tenho cinquenta anos de idade, faço som direto há trinta anos ai chega lá um garoto com um Me66 [8] e um Zoom H4n e vai tomar o meu mercado”. Esse discurso está imbuído em vários técnicos de som que ficam detonando os Tectoys. Acho que essa consideração só entra dentro do jogo do produtor. Porque às vezes o produtor não quer saber se você tem cento e cinquenta anos de técnico de som, quer saber quanto custa você e quanto custa o cara que chegou ontem. Que talvez para um conteúdo para internet o Zoom H4n com o Me66 vai resolver, vai colocar em duas caixinhas dentro de uma televisão.  A possibilidade e a variedade também dos produtos mudou muito. Então não adianta detonar esse tipo de coisa se você não sabe a finalidade e para onde vai esse som. Também não precisa ser um cientista da Nasa para entender que o Zoon H4n tem tanto de tecnologia empregada e o Sound DevicesNagra ou Cantar-X vai ter outra. Isso vai refletir no final das contas na sonoridade. Mas volto a dizer, se eu fizer com gravador X ou Y… se eu tocar aqui! (apontanto para um laptop) não vai fazer diferença nenhuma. É papo corporativista para ganhar um pouco para o seu lado. Existem sons e existe sons, existem projetos e existem outros projetos. Aquele que entra nesse jogo, entra no jogo do produtor que no final quer o menor custo. Eu não gosto deste tipo de debate em relação à exlusão de certas coisas, tem que ser entendido mas sem também nenhum enaltecimento. Tem que refletir sobre o que é a proposta ali, o que está em jogo e não ficar com discurso saudosista que era asim ou assado e que no tempo do Nagra usava só um microfone, isso acho muito besta. Meu tempo é agora e vou fazer o melhor possível agora.


[1] Técnico de som direto norte-americano responsável pela captação de som direto de filmes como “Poderoso Chefão, parte I” (1972) de Francis Ford Coppola , “O Exorcista” (1973) de William Fordkin, “Amadeus” (1984) de Milos Forman entre outros,  que já há alguns anos é convidado pelo Festival do Rio para dar palestras sobre o som no cinema.

[2] Uma grande via elevada no centro da cidade do Rio de Janeiro que desde o início de 2013 está sendo demolida em ocasião das obras do “Porto Maravilha”, projeto de revitalização da zona portuária da cidade.

[3] Centro Técnico Audiovisual, localizado na cidade do Rio de Janeiro, criado em 1985 pela Embrafilme em parceria com a National Film Board do Canadá.

[4] Gravador multipista digital portátil de custo extremamente baixo.

[5] Marca de gravadores multipista digital portátil de alta qualidade com preço acessível.

[6] Professor de som no Curso Superior do Audiovisual da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.

[7] Gravador digital multipista portátil de alta qualidade da marca francesa Aaton.

[8] Microfone direcional condensador da marca Seinheiser, de baixo custo.

Part I e Parte II

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