Sonoridades no Cinema Brasileiro: Márcio Câmara e o som de “Cinema, Aspirinas e Urubus” – PARTE II
Dando continuidade à entrevista com Márcio Câmara sobre sua experiência na realização da captação de som direto do filme “Cinema, Aspirinas e Urubus” (2005) dirigido por Marcelo Gomes, segue a segunda parte.
PARTE II) Experiência na captação de som direto no filme Cinema, Aspirinas e Urubus (Marcelo Gomes, 2005).
Guilherme Farkas: Agora entrando mais especificamente no Cinema, Aspirinas e Urubus (Marcelo Gomes, 2005). Você já comentou um pouco como conheceu o Marcelo Gomes, mas gostaria de saber como se deu sua entrada no filme e como foi o seu contato com o Marcelo.
Márcio Câmara: O Marcelo já tinha feito alguns curtas e feito outras coisas também. Acho que fiz alguns institucionais com ele aqui no Rio de Janeiro na época. Mas eu lembro da proposta dele, do filme. Lembro que ele estava captando recursos para filmar o longa. Lembro dele sempre me falar da difuculdade das filmagens, que é uma dificuldade inerente ao processo de um road movie e o fato de estar quase sempre dentro de um caminhão e de como fazer isso funcionar tecnicamente, tanto para imagem quanto para o som. Eu tive a experiência de fazer o som o curta-metragem dele, o Clandestina Felicidade (1998, co-dirigido com Beto Normal) que ele tinha gostado muito. É um filme que não tem muita elaboração mas em termos de diálogo foi muito complicado porque era todo filmado em Recife, em área urbana, uma série dificuldade que conseguimos conciliar. Mas também a partir disso desenvolvi uma relação boa com ele, que gostou não só da sonoridade como também da relação. Acho também, volto a dizer, que tinha uma certa carência de alguém de som no Nordeste e talvez por eu ser nordestino a gente se entendeu nesse nível. Eu lembro que na época do filme teve um desafio físico muito grande para mim. Eu fiz um filme anterior ao do Marcelo, chamado Cafundó (2005, dirigido por Clóvis Bueno e Paulo Betti) e nesse filme… eu gosto de jogar bola e sempre tento ter algumas atividades físicas, jogo futebol com alguns de meus assistentes… E o Cafundó a gente filmava em várias locações no Paraná. No penúltimo dia o prefeito deu um churrasco para a equipe inteira e tinha um campo de grama. E nesse dia eu consegui romper meus ligamentos do joelho, tive que fazer operção para colocar alguns parafusos. E eu lembro que quando fui chamado para Recife para ver o caminhão, cheguei lá de cadeira de roda, ainda não estava andando. Foi bem após o Cafundó, já estava tudo programado. Quando então eu chego lá, a Sara Silveira (produtora do Cinema, Aspirinas e Urubus) que é uma flor de pessoa, olhou para mim e disse “Esse bosta desse técnico de som, nem consegue andar!”. Logicamente que é um processo que demora muito tempo para você conseguir voltar a andar de novo, é uma questão de fisioterapia. Só que quando eu cheguei no filme eu ainda estava no processo de fisioterapia, o joelho ainda não estava 100%. E é engraçado que muitas das coisas que a gente fazia que eram os dois (personagens de João Miguel e Peter Ketnath) no caminhão, eu ficava lá atrás e taticamente já me arranjava lá, consegui construir com o pessoal da maquinária uma pequena mesinha que eu colocava meu mixer e meu gravador, porque não dava para entrar com meu carrinho de som dentro do caminhão. Quando eles (os atores) olhavam só para frente ou quando estavam com a câmera dentro do caminhão fazendo planos do lado, a gente estava tudo lá atrás. E lá eu ficava durante o dia todo com o pé estirado e com a bolsa de gelo. Então foi um filme muito desgastante. E a noite eu ia para o Hotel e ficava na piscina porque a água realmente é muito importante para você conseguir fazer com que o joelho tenha uma tração. Mas ao mesmo tempo não tem peso, você ficar andando dentro da água é a melhor coisa que tem, porque você faz exercícios que vai lhe reforçando toda a estrutura dele. Então, para mim além de toda condição complicada das sequências, tinha o calor, a filmagem dentro do caminhão, etc.
G.F.: É filmado no interior de Pernambuco?
M.C.: Paraíba. Nós filmamos em Patos, Cabaceiras…. Tudo interior da Paraíba. E o desafio foi grande também pela questão física.
G.F.: A segunda pergunta, queria saber sobre a pré-produção, como foi esse processo para o som.
M.C.: Quando cheguei eu já sabia da situação, li o roteiro e já tinha entendido. Pergunto para ele, falo que posso até pendurar algumas coisas aqui… O que eu tinha visto, o que ele me mostrou foi só carcaça de uma caminhão de época. Eles iam colocar um motor e reconstruir tudo por dentro. Quando vi isso, logo falei para o Marcelo para ele deixar um espaço porque de repente eu prego alguns microfones aqui em cima porque o lapela em carro às vezes é difícil por causa do cinto de segurança, vento também. E ele disse que sim, claro, iria ter um espaço. Quando eu chego para filmar, o Marcos Pedroso (diretor de arte) tinha enchido de coisa, tinha feito como que uma cestinha que, de maneira dramática, o ator (Peter Katnath) colocava várias coisas lá dentro… Mas só que o Marcelo não tinha me dito nada. Ou seja, eu tinha que me virar, tinha que dar meu jeito. Aquela coisa, você combina e descombinam com você e nem lhe avisam, normal. Aí o que eu pensei… aqui vai ter que ser lapela e rezar para que tudo dê certo. Porque o lapela na realidade me dava uma condição de presença que de certa forma se condicionava para os plano que o Marcelo tinha na cabeça, planos fechados. O que é ruim do lapela é sempre a questão da profundidade de você não ter a dinâmica do espaço que lhe tira totalmente. Foi dessa maneira… não tinha muita possibilidade e rezei para Deus para que desse tudo certo. E engraçado que dois anos depois que o filme já estava pronto, eu encontrei com a Sara Silveira no Festival de Brasília e tem essa coisa da pós-produção que é muito solta… você nunca sabe o que realmente aconteceu… e ela me disse que está tudo lá (na cópia final do filme), tudo som direto. Se alguma coisa não entrou é porque o Marcelo não gostou ou quis trocar um plano ou outro mas que não teve que dublar nada. Esse é o tipo de resposta que você tem muito ocasionalmente. Porque eu encontrei com ela lá coincidentemente e comecei a perguntar do meu trabalho. Porque você não tem um feedback… Eu não escuto nada. É a mesma pergunta que eu sempre faço aos outros técnicos de som e eles tem a mesma queixa. Por mim, posso dizer que eu procuro, parece que outros também procuram e sempre entra num vazio, parece que tem um abismo. Parece que as pessoas tem um conhecimento muito adquirido, uma mística nesse trabalho da edição de som ou se são um bando de autistas. São vários que nunca me responderam, vários. E isso volto a dizer, não estou falando que a pessoa não seja boa, mas que essa relação do conhecimento, da volta, do feedback, isso não costuma ocorrer. Voltando para os meus filmes, as coisas que faço, eu sei que quando eu precisar do técnico de som, que ele grave um determinado som ambiente, eu vou usar esse ambiente na edição de som. O que eu fazia anteriormente é um mapa. Quando o técnico grava um ambiente e o editor tem condição de ter uma diálogo com ele na construção sonora do filme, o som do filme cresce demais! O editor vê que em determinado momento da edição ele pode utilizar um ambiente proveniente do som direto. Onde foi gravado tal som, que horas, com que condições. Quantas e quantas vezes as pessoas me ligam perguntando onde está determinado som. Não tem nem a cara de pau de ir lá na relação de sons que eu gravei, ta tudo lá. Tem uns caras que querem só dar play, ficar no ar condicionado e tá tudo certo… A situação fica muito complicada porque você não tem condições de ficar indo lá acompanhar… Alguns filmes eu já fiz isso, fazer o som direto, fazer a edição, a mixagem. Mas o filme demora muito tempo para montar, chega na edição de som você ja ta fazendo outra coisa, é muito complicado.
G.F.: Mas esse mapa de som, você faz depois que grava tudo, depois que o filme terminou?
M.C.: Sim, depois que eu gravo tudo. Por exemplo (mostrando no laptop) aqui eu fiz com DAT, número de rolos, canais separados, lado direito é lapela, esquerdo é boom, microfones que usei, sequências com problemas, falas com problemas, rolo 6, ambiente, noite, stereo. Para todo filme eu faço isso baseado no roteiro. Para cada sequência tem um ambiente que eu acho que pode ser interessante… Esses relatórios eu faço exatamente para ajudar na pós-produção, para ele ter essa reflexão, essa possibilidade de usar ou não usar… Não estou dizendo que ele vá usar tudo que estou propondo não. Mas para ele pelo menos ter a possibilidade de usar… Mas esse eu acho um problema recorrente, vários outros técnicos de som dizem a mesma coisa.
G.F.: No dia-a-dia você gera um boletim, por dia?
M.C.: Hoje em dia eu gero tudo por…. No Cantar ele vai gerando a cada take uma informação de boletim e no final do dia ele gera um PDF e nesse PDF tem tudo que você fez naquele dia, você organiza então pelo dia… A Sound Devices tem um negócio que eles chama de Wave Agent, que é bem parecido com o do Cantar mas você tem que fazer depois no computador… Mas por exemplo, o Cinema, Aspirinas e Urubus foi feito com o DAT, dois canais, stereo e aí era mesmo um boletim escrito a mão mesmo. Ali você marcava o timecode, sequência, plano, observações. E isso é um material que iria todo, também hoje, para a pós.
G.F.: Como foi o processo de captação de som direto no set e como foi a relação sinal ruído no sertão? Como isso influenciava numa boa captação de som direto?
M.C.: As situações mais difíceis realmente foram as de dentro do carro. Porque tinha um problema muito delicado no ruído que vinha do motor, tive que fazer um tratamento acústico lá para isolar… E sempre que estávamos filmando de frente e do lado do caminhão dos atores, era um outro carro que puxava o próprio caminhão… Por algum motivo técnico de mecânica, o caminhão da cena, dos atores, tinha que ser puxado… Mas quando em planos em que vemos os atores de costas e a estrada ao fundo, aí sim o caminhão está sendo movimentado por ele mesmo. E minha grande preocupação era que esse outro motor do carro que estava puxando o caminhão não invadisse sonoramente o ambiente do caminhão cênico, nas falas do Johaan e do Ranulfo (personagens de João Miguel e Peter Ketnath respectivamente). E de certa forma… lógico que ancorado pela questão do lapela que ele isola e destaca a voz do ator em relação ao som ambiente. E a gente tinha muitas situações, eu lembro que era complicado que… Tem uma situação que a gente chega, a camera está no carro (caminhão cênico) num tipo de plataforma filmando o Johaan e o Ranulfo, quando o caminhão parava, o Mauro (Mauro Pinheiro Junior, diretor de fotografia) descia e filmava a familia esfomeada e o carro ia embora… E eu ficava… Meu assistente sempre ficava em outro carro porque se eu gritava ele já sabia o que tinha que fazer… Ele não estava fazendo boom para os dois atores lapelados, mas sempre que tinha uma situação ele ia lá, resolvia… Mas nessa situação que tava falando, tive também… mandando um sinal sem fio, ele sem fio, falando para eu gravar também essa perspectiva dessa família que tava carregando uns baldes, não lembro muito bem agora… tinha essas pessoas em primeiro plano e o carro ao fundo partindo. Ou seja, primeiro estava num plano mais próximo com a camera no caminhão, depois descia e o carro ia embora e nesse primeiro plano essa família pegando alguns baldes. Essas situações… Situações por exemplo, que eles (os atores) estavam no meio do mato, era o mais prazeroso, o mais fácil de certa forma. Porque aí você tava com o boom… As situações, já no final, que eles deixam o carro e saem caminhando, ficam pintando o carro… Dentro daquela realidade eram lugares ermos, o que foi maravilhoso para mim. Não tinha que me preocupar com muita coisa intrusiva. Porque tem uma questão muito forte, muito importante. Quando por exemplo estávamos filmando nas cidades… é um filme de época, então nada que fosse denunciativo de uma época diferente da do filme poderia entrar. Isso também era um diferencial, um desafio. Logo nessas situações do sertão não tinha para mim um grande desafio. Muito pelo contrário, era ótimo! Não lembro de nenhum problema muito importante. Mas tinha situações que parávamos no meio da estrada, entrava um figurante, um personagem. Ele já tinha que estar lapelado para quando ele entrar já poder falar. Porque às vezes eram planos sequência que não poderiam ter corte, ou se fosse ter corte seria na edição. Tínhamos que dar no set essa possibilidade técnica para a gravação. Tinha outra coisa também, mas eu fiquei meio que dependente… fiz alguns testes… Porque tem um problema sério, a não ser que você esteja muito longe da fonte de transmissão. Os sem-fio podem pegar, dependendo da frequência do motor, eles podem pegar interferência também. Por exemplo, fazer esses câmeras-car que você bota um guincho, a câmera numa plataforma e o carro é puxado. Você só vê os personagens no carro cênico, num certo plongée. E ai as vezes o próprio motor do guincho já me dava trabalho. Esse guincho que puxava fica na frente, aí você fica com ele e por vezes muito longe das linhas de transmissão. No caso do Cinema, Aspirinas e Urubus não, em todo caso eu estava razoavelmente próximo. Para mim então era muito importante estar próximo dos sem-fio que tinha colocado nos atores, e eu não usava microfone com fio por conta de toda agilidade que o filme pedia. A questão dos sem-fio outra preocupação técnica mas que não deu muito problema. Eu lembro da… Tem uma situação complicada de vento que eles estavam, eles chegam numa situação… Ele acabou de passar um filme e o Peter vai dormir em cima do caminhão… Nessa ocasião em específico, minha vara boom tinha acabo de quebrar, tinha tanto vento… Eu estava com o microfone Seinheiser MKH70 e como a vara era de carbono, acabou quebrando, a vara já tinha muitos anos. Logicamente tinha uma vara reserva e consegui gravar o plano sem problemas… Mas em relação às locações, o desafio mesmo era manter um som de época, da diegese fílmica, e não deixar qualquer outro som mais contemporâneo entrar.
G.F.: Bom… sobre a garantia da inteligibilidade dos diálogos, você acredita que foi através dos sem-fio que você garantiu tecnicamente?
M.C.: Sim sim… Por mais que eu prefira esteticamente o som do microfone aéreo (microfone direcional) em relação aos espaços sonoros que o microfone está inserido. Mas no caso do Cinema, Aspirinas e Urubus era o lapela mesmo, não tinha outra opção. O desafio era fazer com as condições que eu tinha à minha disposição. Logicamente que eram bons microfones de lapela, microfones Sonotrim, sistema sem-fio Lectrosonics. Não são quaisquer equipamentos. Mas eu quero dizer que eu não inventei nenhuma roda não. A única roda que eu tive que inventar foi fazer com que naquele calor, naquela estrada… Porque como as estradas eram todas muito ruins, muito buraco, estradas de terra, pregar microfones direcionais na cabine do caminhão não ia funcionar, mesmo… Quanto mais esburacada a estrada mais o Marcelo Gomes gostava….
G.F.: Tem um professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) chamado Rodrigo Carreiro. Em 2010 ele escreveu um texto publicado pela E-Compós (Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Comunicação) chamado “Relações entre imagens e sons do filme Cinema, Aspirinas e Urubus”. O Rodrigo é professor de som do curso de cinema da UFPE e nesse texto ele estuda o som do filme. E na análise dele, ele elogia muito o som do filme, ele diz que o filme se destaca em termos de construção sonora no contexto do cinema brasileiro contemporâneo. Ele diz que o som se estrutura resumidamente em três elementos. Primeiro que é um filme bastante silencioso e se utiliza disso narrativamente em diversos momentos, o que eu acho que seria até mesmo uma presença do sertão dentro da diegese. O segundo elemento seria a relação sonora entre Johaan e Ranulfo, por mais que essa relação se dá muito mais pela não-verbalidade do que pela voz em si. E finalmente o terceiro elemento seria o rádio equanto som acusmático, um som que sua fonte não é mostrada na imagem…
M.C.: Só uma coisa, desculpe interromper. Na época que estávamos gravando o Cinema, Aspirinas e Urubus, o meu filme (Rua da Escadinha 162) estava bombando muito, granhou vários prêmios em festivais no Brasil. É um filme sobre um pesquisador de música em Fortaleza (Ceará). Depois que terminou o filme, na época da montagem e edição de som, eu e o Marcelo Gomes fomos a Fortaleza, passamos dois dias lá com esse pesquisador. E aquelas músicas que estão lá, Serra da Boa Esperança, tudo aquilo saiu da coleção desse pesquisador, o Christiano (Christiano Câmara) é citado no filme. Toda aquela pesquisa musical foi por conta desse cara que eu levei ao Marcelo… E é como você falou, o filme tem o diálogo, tem o silêncio e tem a música. Mas não é um filme que traz a música para provocar sentimento. Ela é parte singular da narrativa do próprio filme. A Serra da Boa Esperança quando é tocada ela tem um pontualidade específica no filme, não está colocada ali para o espectador ficar feliz ou triste… Ela é toda de época… Não lembro se tem um acorde construído para cena tal, lembro de ser realmente músicas já compostas há muito tempo e colocadas pontualmente no filme, isso eu lembro. Do mesmo jeito que o silêncio é utilizado e os diálogos também. Nesse sentido o filme é muito, concordo com o Carreiro neste sentido de como o Marcelo Gomes foi feliz de não usar a música enquanto elemento externo… Porque sempre o Marcelo disse que queria errar, incorporar o erro. Tem o primeiro plano que começa todo super-exposto e depois vai corrigindo. O filme começa e termina assim. Você não sabe se está errado, o que que está acontecendo… Da mesma forma ele não queira fazer escolhas genéricas e recorrentes que se faz com o som. Bom, mas não sei se eu te interrompi…
G.F.: Não não. Tem uma crítica que eu faço da interpretação dele, até da forma como são construídas essas analises fílmicas, em que se estuda os filmes enquanto interpretações de texto e se ignora completamente o processo para se chegar naquilo. Porque o diálogo por exemplo, a inteligibilidade é algo super importante, quase sagrada para o filme. O espectador tem que entender o que os atores estão falando. O que está diretamente ligado ao som direto. Isso é muito importante. O quanto uma escolha estética do diretor passa fundamentalmente pelo som direto. E me parece que as vezes, em análises frequentes do filme enquanto interpretação textual, tais articulações do som direto por exemplo, não existem ou se existem não interessam à análise e ao estudo do cinema…
M.C.: Engraçado, ninguém fala do trabalho do técnico de som… Me lembrei agora de uma sequência difícil pra caramba. O Marcelo tem uma coisa legal, a Eliane Caffé também, que é bem legal. Então tem uma cena lá que tem um senhorzinho de uma casa, ele traz os pratos de comida para o Ranulfo e o Johaan que estão sentados, a câmera vai seguindo eles… E o improviso era total. O que ficava muito difícil para o Lênio (microfonista). O improviso era tanto para os figurantes como para os atores. Por mais que no roteiro tinham as falas, chegava na hora era tudo completamente diferente no sentido que eles poderiam colocar uma fala a mais, colocar outra. E acho que o técnico de som tem que estar disposto a esse desafio, tem que fazer funcionar. Foi como o diretor escolheu fazer o filme dele, você tem que topar. As vezes não dá certo e você tem que falar e pedir para fazer de outra forma. Muitas vezes os figurantes falavam e eu nem sabia que iriam falar alguma coisa. Além de ter toda essa maluquice do que poderia ser proposto, o figurante falava todo para dentro. Nisso tem uma singularidade, é o cara local que mora mesmo lá. E isso é muito marcante no filme. A cara e a voz desse figurante traduz uma energia e uma certa ilusão da realidade que definitivamente marca o som do filme. E em termos de processo, de feitura, isso é muito difícil. No começo do filme, chega lá o Johaan, o Ranulfo ainda não tinha aparecido, e aborda um caboclo pedindo informações. Totalmente improvisação. Essa hora que você percebe que está fazendo coisas diferenciadas e tem que prezar ao máximo para que aquilo ali funcione. E não parar todo o set para gritar que para o som não funcionou. E pode ser até que para o som não tenho funcionado. O que eu quero dizer é que essas situações, essa felicidade ou infelicidade do fazer, é muito onde está essa criatividade. De você poder estar um pouquinho mais adiante, um pouco mais ligado, um pouco mais junto com o que está acontecendo no set para você ter a resolução do problema mais rápido. E não ficar numa postura de ficar vetando tudo e dizendo que não deu para o som. Mas para formar essa “magia” você tem que estar muito presente no processo. Lógico que as vezes não dá para funcionar. Porque a Lili (Eliane Caffé) faz a mesma coisa. Puxa algumas situações, e também com ela deu certo, foi super maravilhoso em algumas cenas de improviso no Sol do Meio Dia (2010). De sempre estar pronto, se algo é proposto aquilo tem que ser feito.
G.F.: Nesses momentos no set quando acontecia uma situação adversa, você garantia o diálogo, ou chegava a ficar um pouco inseguro em algumas situações?
M.C.: Para ser sincero Guilherme, eu tinha uma insegurança em relação à monitoração dos ruídos externos no caso dos microfones de lapela, mesmo sabendo que logicamente isso ia ser tratado na pós-produção. Mas eu sabia que essas situações que seriam as mais delicadas, eu me aprimorei mais nas questões… especialmente… Porque como o lapela não é muito intrusivo, o ator fica com ele e se esquece, sempre deixava rodando nessas situações de improviso para depois ver o que que o diretor ia usar, o que ele ia utilizar ou não. Não tem muito poder de deixar a fita rodando o que fosse e as vezes ter uma conversa muito particular com o ator para ele não bater ou deslocar o microfone e isso sem o diretor saber… Para o ator articular mais uma certa coisa.
G.F.: Na sequência do almoço, que o Johaan e o Ranulfo estão comendo naquele quarto vazio, que tem o improvise. Me chama muito a atenção a questão da espacialidade sonora do microfone directional. Da presença mesmo do som direto. Aquela locação soa daquele jeito…
M.C.: Naquele plano é isso mesmo, som de microfone direcional aéreo, total, não tem lapela. E desculpa, isso também é uma questão que eu tinha na cabeça. Eu quero nas situações que eu não tiver no caminhão eu não vou usar lapela exatamente para criar uma sonoridade diferente. Porque hoje em dia tu sabe, é o contrario, qualquer set começa com o lapela depois que você pensa em colocar um aéreo. Mas no filme do Marcelo fiz questão de usar nessas situações o boom e fazer render.
G.F.: Isso eu acho uma questão interessante porque existem várias correntes do que é um bom som direto, e num cinema norte-americano blockbuster essa espacialidade do que, digamos, pode ser definido como “espacialidade do som direto” não é algo desejado. Muito pelo contrario, é exatamente o que não deve ser feito. Deseja-se apenas a presença da voz em primeiríssimo plano. Queria saber como você lida com essa questão no seu trabalho. Como a locação está soando, como esse espaço pode sugerir certos sons…
M.C.: Dentro de uma situação normal de ficção eu sempre tento dar, especialmente, volto a dizer, se é uma coisa de época ou se é algo contemporâneo, eu acho que… Eu gosto… Acho que a minha assinatura dos filmes que faço, eu gosto de colocar a sonoridade do lugar no que eu estou gravando. Então eu não gosto… pra mim, se tem alguma interferência, volto a dizer, a não ser se é algo completamente intrusivo, mas se são algumas interferências que não comprometem o som, eu gravo. Coisas que geralmente muitas pessoas ficam desesperadas eu não tenho tanto problema. O mundo está ali, se essas intrusões não comprometem a inteligibilidade dos diálogos…. Se tal som fizer parte da cena, eu acredito estar ajudando a já constrir a sonoridade do filme. Não tenho que anular tudo, botar lapela em todo mundo para levar para pós produção tudo limpinho para os editores de som comporem tudo. Outro dia vi no video da Gabriela Cunha, o Beto Ferraz falando do som do Sol do Meio Dia que tava muito ruim. Idiotice porque na realidade essa construção que eu quero fazer é exatamente isso, eu quero dar essa opção de que o filme também seja orgânico… E às vezes eu não tenho condições disso. No Cinema, Aspirinas e Urubus nos planos de dentro do carro eu não tinha opção, tinha que utilizar o lapela, não tinha outra opção. Mas quando tem opção, o (microfone) aéreo vai me dizer mais…. e nessa construção eu não tento enterrar totalmente o ruído. E isso é uma questão da escuta, treinamento acústico do ouvido. Como você consegue isso, dosar esse nível do sinal com o ruído para que seja interessante para o filme. Logicamente que nada do que você faz é um segredo. O diretor lá… só se ele for um surdo total para ele não entender, e volto a dizer, essas coisas é muito de diálogo. De dizer, “ó fulano, aconteceu isso, quer escutar?” Engraçado, uma coisa que acontecia quando eu tava começando e tinha menos experiência, as pessoas sempre me olhavam meio torto no set duvidando muito da minha capacidade auditiva. De discernimento quando o som está bom ou não para determinada cena. Ai ficam achando que tem que ser assim ou assado. Esse mundo da publicidade é cheio disso. Outro dia eu fui gravar algo da Coca Cola que o diretor era assim, tudo bem que não precisa conhecer quem sou eu e que eu fiz, mas o cara enquanto estávamos filmando num lugar de reciclagem barulhento pra caramba, eu pedia para parar… não tinha como parar e eu falei para fazer. O diretor então me perguntava se o som tava direito… eu respondia “pô, não sei, quer escutar? Se quiser fazer de novo a gente faz…” Eu to achando que ta valendo. O cara ta falando, to escutando, mas tem um monte de coisa acontecendo. Como se o diretor estivesse duvidando de que aqueles ruídos todos estão no som… Tava fazendo também um reality-show em Copacabana e a diretor me tratou do mesmo jeito como se a função minha fosse fazer com que o som fosse o pior possível, não é nem o pior possível… Existiu uma falta de cuidado e volto a dizer, eu vou fazer de acordo com o que tão me dando. É engraçado, no set você é posto a prova quando está começando a carreira e também se já faz isso há cinquenta anos… Acho até normal. Tem essas atitudes… e por as pessoas desconhecerem esse processo, e volto a dizer, desconhecerem mesmo, não terem… Por falta de… Lógico que o elemento da falta de confiança é muito importante. Mas por desconhecerem o processo como um todo, especialmente hoje com a edição de som, o que se pode tirar o que pode adicionar, saber o que aquele som representa realmente. Porque se você ficar assim você fica paranóico e não consegue resolver nada, tem que estabelecer uma relação de confiança com a pessoa. Alguns diretores, como sabem e conhecem, reconhecem que você está fazendo o melhor possível, no caso do Marcelo (Gomes) nós ja tinhamos todas as experiências juntos ele já sabia das minhas disponibilidades de tentar resolver as coisas da melhor forma possível sem atravancar o processo todo nesse tipo de atitude…
Continua…
Sonoridades no Cinema Brasileiro: Márcio Câmara e o som de “Cinema, Aspirinas e Urubus” – PARTE I