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May 1 2014

Entrevista com o sound designer Edson Secco

Edson Secco

Músico de formação e com uma experiência anterior no teatro, Edson Secco reúne em seu trabalho no cinema uma série de qualidades que justificam o uso do termo sound deigner, de um modo geral ostensivamente mal utilizado, para qualificá-lo: seja por pensar o som dos filmes como um todo integrado (relativizando distinções entre música e ruído, por exemplo); seja pela multiplicidade de funções que exerce e que conferem uma unidade estilística ao seu trabalho; seja ainda por sua colaboração precoce, ainda na etapa do roteiro, em muitos dos projetos dos quais participou. Nessa conversa, Edson Secco falou ao Artesãos do Som do seu percurso profissional e de sua abordagem pessoal do som no cinema.

Artesãos do Som: Acho que a gente podia começar essa conversa falando um pouco do teu trabalho antes do cinema. Você teve uma experiência anterior com música e com o teatro também.

Edson Secco: Desde moleque, eu sempre fui apaixonado por música. Durante a minha adolescência, eu toquei em várias bandas de garagem aqui em São Paulo.

 

A.S.: Que instrumento você tocava?

E. S.: Eu comecei tocando bateria. Com 16, 17 anos, passei a estudar piano também. Entrei em conservatório de música, estudei harmonia.  E fui aos poucos me apaixonando pelo som, pelo timbre dos instrumentos, por essa coisa de encontrar timbres… E assim eu descobri o estúdio, a engenharia de som: como gravar e manipular um som.  Com 19 anos, eu já trabalhava em um estúdio como assistente.  Com 22, 23 anos, eu montei um estudiozinho de ensaio. Comecei a produzir alguns trabalhos musicais, bandas de amigos e tal.

 

A.S.: Você lembra quais foram as suas primeiras experiências como engenheiro de som?

E.S.: Eu comecei a trabalhar no Cakewalk 3.0, a primeira versão do Cakewalk que aceitava áudio, aos 16, 17 anos.  Desde criança, eu gostava muito de informática, cheguei a trabalhar um tempo como programador. Essa experiência me ajudou muito no trabalho em estúdio como engenheiro de som.  Acho que eu posso dizer que o computador sempre foi o meu instrumento principal. Então, eu passei muito tempo trabalhando com o Cakewalk, uns 5 anos, depois conheci o Logic. Com ProTools mesmo, eu só comecei a trabalhar muito tardiamente, quando eu entrei na Companhia de Ópera Seca.

 

A.S.: Fala um pouco dessa tua experiência com a Companhia.

E.S.: Esse foi um grande marco na minha vida. Como eu cheguei na Companhia? Bem, eu tinha sido aluno do IAV (Instituto de Áudio e Vídeo) aqui em São Paulo, que é uma escola bastante tradicional de áudio e produção musical que já formou muita gente. O IAV abriu muito a minha cabeça sobre o que é o áudio. Não era apenas pegar um instrumento, plugar e apertar rec. Havia toda uma ciência por detrás daquilo.

 

A.S.: Eu acho interessante você tocar nesse ponto porque é muito frequente uma certa definição da nossa atividade como uma atividade técnica e, dentro desse mesmo raciocínio, um entendimento da técnica  como algo diametralmente oposto a um trabalho criativo digno desse nome.

E.S.: Pois é, eu pessoalmente acredito que a técnica é tudo. Você tem que dominar a técnica, essa ciência, para transformar algo em arte. As duas coisas não são incompatíveis. Pelo contrário, dependem uma da outra. É impossível menosprezar a técnica. Não existe algo como um trabalho “meramente técnico”. Qualquer coisa que você faça no aspecto técnico vai influenciar o timbre do instrumento lá na frente e isso é uma opção estética. Mas, enfim, voltando a falar sobre como eu entrei na Companhia de Ópera Seca: na verdade, um professor de ProTools no IAV me recomendou para esse trabalho. Eles estavam buscando nessa época um novo engenheiro de som que também fosse músico. Eu fiz uma entrevista rápida com o produtor da companhia e consegui o trabalho. Isso foi em 2004.  Nessa época o Gerald Thomas tava escrevendo a peça nova do Marco Nanini chamada “Um circo de rins e fígados”. Foi a minha estreia no teatro. Nessa peça, eu trabalhei mais como engenheiro de som do que como músico. Mas aí eu comecei a apresentar algumas composições minhas pro Gerald que gostou e passei a atuar como músico também.

 

A.S.: E no que exatamente esse trabalho com a Companhia de Ópera Seca foi um marco na sua vida profissional?

E.S.: Foi na Companhia que eu experimentei pela primeira vez uma coisa que depois eu transpus para o cinema: essa comunhão entre som e música. Essa ideia de que um som melódico pode dialogar com um ruído, um som eletrônico dialoga com o ruído dos atores em cena. E isso também de pensar o teatro como uma instalação, essa caixa preta, fechada… isso é quase cinema, né?

 

A.S.: Foi a primeira vez também que você teve no seu trabalho um elemento visual e dramático, certo?

E.S.: Sim, claro, foi onde eu realmente descobri essas possibilidades. Mas cinema era ainda um sonho, um desejo muito distante…

 

A.S.: E esse desejo de cinema te aparecia como? Você pensava em atuar no cinema como músico ou como sound designer?

E. S.: Eu não tinha ainda essa clareza.  Eu sempre pensava na trilha sonora de um filme como um todo. Isso era bem instintivo. Eu não pensava só na música porque o ruído me atraía muito também. Eu lembro que quando eu tinha uns 16, 17 anos, durante o ensaio de uma banda, eu fui plugar um cabo num daqueles delays analógicos da Boss e o cabo tava com defeito, sabe, espocando, e aí o delay processava esses plocs do cabo e tudo virava uma loucura. Eu sei que a gente ficou horas brincando com esse achado, criando umas texturas loucas. Então, por isso que, no cinema, eu não conseguia separar música e ruído. Era o som, né? Na verdade foi na época da companhia que eu descobri que existia essa figura do sound designer, tanto no teatro quanto no cinema. Eu na verdade nem sabia como funcionava no cinema a hierarquia das coisas e tal.

 

A.S.: Então, a primeira oportunidade que você teve de fazer algo próximo a esse teu ideal de cinema foi trabalhando com o Gerald Thomas?

E. S.: Sim, foi. E tinha uma outra coisa bacana na companhia, era que a gente trabalhava junto, durante os ensaios. Eu não ficava isolado no estúdio criando coisas para serem enxertadas na cena depois. Não, eu trabalhava com a cena acontecendo ali, na minha frente.

 

A.S.: E o seu começo no cinema, como foi?

E.S.: Em 2007, a Paula Gaitan foi assistir à peça “Rainha Mentira” da Companhia e gostou muito do meu trabalho. A gente começou uma conversa a partir dali. A Paula tinha gostado muito do meu trabalho nessa peça, que foi também meu primeiro trabalho em surround. Foi muito forte essa peça. Pra mim, foi uma espécie de experiência cinematográfica dentro do teatro. Mas, enfim, voltando a falar sobre o cinema propriamente dito: a Paula nessa época tava terminando de montar o Diário de Sintra e me chamou pra fazer a edição de som.

 

A.S.: Quando ela te chamou, o filme já tinha um corte final?

E.S.: Não, o corte não tava fechado ainda.

 

A.S.: O som chegou a influenciar o processo de montagem?

E.S.: De certa maneira sim, e por demandas muito específicas da Paula. O filme tinha sequências lindas, mas ao mesmo tempo muito longas; quer dizer, elas não se sustentavam apenas com as imagens, você precisava de algo pra animá-las temporalmente: no caso, o som. Então, a Paula me mandava essas sequências, eu sonorizava e mandava pra ela de volta, e a gente ia trocando material assim. Ficamos uns dois meses fazendo isso, ainda durante a montagem. Depois, é claro que ainda houve um tempo de edição de som propriamente dita, mas muito do trabalho foi feito de maneira concomitante à montagem.

 

A.S.: Você mixou também o filme?

E.S.: Eu pré-mixei e acompanhei a mixagem aqui no Mega de São Paulo. Foi o Rodrigo Ferrante que fez a mix final.

 

A.S.: E como você compara essa primeira mixagem no cinema com a tua experiência anterior no teatro com o Rainha Mentira  e o uso do surround?

E.S.: No cinema, eu tive que adequar algumas coisas. Algumas experiências que eu fazia no teatro, no cinema ficariam exageradas demais. Eu gostava, por exemplo, de usar muita coisa atrás (no surround) no Rainha Mentira e isso funcionava muito bem no teatro, dentro daquele espaço, com os atores em cena. Mas eu descobri que se eu tentasse fazer a mesma coisa no cinema aquilo virava ruído. Eu lembrava do Rodrigo falando na época: “Cara, isso não vai ficar legal na sala… (risos). Então, eu fui me dando conta dessa bi-dimensionalidade do cinema, essa relação com a tela o tempo todo.     

 

A.S.: Falando agora da sua experiência pós Diário de Sintra. Como começou a sua parceria com o Eryk Rocha? A Paula que apresentou vocês dois?

E.S.: Sim, eu conheci ele na época do Diário,  na estréia do filme se não me engano, mas a gente não se tornou muito próximo nesse instante. Até que um ano depois disso mais ou menos, ele me convidou para participar do Transeunte. O roteiro do filme estava  sendo escrito; era o primeiro ou segundo tratamento, eu acho.

 

A.S.: Eu li uma da entrevista do Eryk onde ele fala justamente sobre a sua participação no filme como tendo começado ainda na elaboração do roteiro. Você já havia começado a gravar algumas coisas antes do filme ser rodado, programas de rádio especialmente, que, aliás, são importantíssimos na estrutura narrativa do Transeunte. Como foi esse processo?

E.S.: Desde o começo, o Eryk já havia frisado a importância do rádio no Transeunte. Eu passei, então, a pesquisar esse universo. Comecei a escutar umas rádios AM e gravar esses programas pra entender mais disso: os tipos de programa, a relação que o locutor estabelece com o ouvinte, acabei descobrindo também esses programas específicos da terceira idade. E aí, eu acho que eu fiquei uns 6 meses gravando.

 

A.S.: E você ia decupando isso com o Eryk?

E.S.: Eu fazia uma primeira seleção, mandava para o Eryk e ele selecionava aquilo que era mais interessante para ele. Então, por exemplo, eu me lembro que ele gostou de alguns programas de economia, essa coisa fria dos números, estranha àquilo que é humano. Outra coisa pela qual  nós dois ficamos fascinados  foi a figura dos especialistas. É impressionante porque na rádio tem especialista de tudo (risos). Um desses entrou no filme, um especialista em tireoide (risos). E é engraçadíssimo porque  o cara fala com uma pompa da tireoide, dos efeitos sobre a tireoide… Uma coisa interessante é que, a partir de algumas dessas gravações de rádio, o Érik subtraía sequências inteiras do roteiro. Então, ao invés de uma cena normal com atores etc., a gente colocava um trecho de um desses programas de rádio pra contar o que a gente queria contar.

 

A.S.: Vamos trocar essa cena por um bordão…

E.S.: Quase isso (risos). Tem uma cena, por exemplo, onde a gente vê um casal discutindo. O som da discussão do casal fica em segundo plano e o que a gente escuta mesmo em primeiro plano é a narração no rádio de uma partida de futebol, o lance de  um pênalti, que acaba funcionando como uma espécie de comentário satírico para essa cena que, de outro modo, poderia ter ficado pesada, prolixa demais…

 

A.S.: Durante a montagem, o processo se assemelhou àquilo que você já tinha feito com a Paula? O Éryk te enviava o primeiro corte de algumas sequências para você sonorizar?

E.S.: Em algumas sequências, sim. Na cena de abertura, por exemplo, onde havia realmente essa necessidade de uma estrutura sonora para conduzir aquilo tudo.

 

A.S.: Essa sequência é incrível, aquele som alterado de helicóptero que abre o filme… E olha que existe uma concorrência seríssima no que diz respeito a sons de helicóptero abrindo filmes: La Dolce Vita, Apocalypse Now… Acho que  você se saiu muito bem a despeito disso (risos), ficou realmente incrível.

E.S.: Obrigado. Essa sequência foi mesmo muito trabalhada por mim, pelo Eryk e pela Ava (montadora do filme).

 

A.S.: E esse som de helicóptero não tá ligado a nenhum elemento diegético facilmente identificável. Parece que a razão de ser dele se dá por uma série de relações formais que ele estabelece com a imagem: o tremulante das pétalas que caem do céu, o batimento da grade do cemitério na fotografia altamente contrastada… Tudo isso combina muito bem com esse som iterativo da hélice. Me parece que esse som está aí antes de tudo porque ele atende a esses requisitos. Trata-se menos de uma lógica narrativa; é um pensamento muito mais musical.

E.S.: Sim, pra mim é isso mesmo. Eu concebo o som do filme também como uma composição musical pensando o tempo inteiro em dinâmica, texturas… Eu não consigo teorizar muito sobre isso, mas é algo muito pessoal do meu trabalho, esse tipo de visada.

 

A.S.: Mas como é o teu processo de criação? Como ele se deu nessa cena específica?

E.S.: Na verdade, ele tem uma base factual. Tinha um helicóptero sobrevoando o cemitério quando a gente rodou essa cena (risos). Não há nada de som direto dele ali, mas ele serviu de inspiração, claro. E aí quando eu vejo pela primeira vez a imagem do Expedito andando ao lado das grades, do cemitério, aquele batimento da imagem, como você disse, o helicóptero me pareceu o melhor som pra acompanhar aquilo. Mas não um helicóptero de verdade. O que eu gravei aquele dia no cemitério não era um som suficientemente interessante. O que eu queria era o som do helicóptero ecoando dentro do Expedito. Tudo na cena é distorcido de modo que a gente perceba como o Expedito, como ele tá se sentindo naquele momento.

 

A.S.: E como você criou esse som?

E.S.: Tem algumas coisas simples de varispeed, coisas que eu fiz no Max… Na verdade, são cinco ou seis texturas diferentes, em ritmos diferentes, em frequências diferentes. Tudo isso pra criar esse descolamento da realidade sem deixar de fazer totalmente parte daquele universo.

 

A.S.: Você também foi o técnico de som direto do filme?

E.S.: Sim, quando o Erik me chamou, ele disse que queria que eu participasse do processo inteiro. Essa ideia sempre me atraiu no cinema. Não porque eu queira monopolizar todas as etapas, mas porque isso me permite garantir uma espécie de unidade em todo o trabalho.

 

A.S.: Sim, nesse caso me parece que você de fato pôde vivenciar esse ideal da figura do sound designer, como sendo o responsável pela integralidade da pista sonora de um filme.

E.S.: Eu acho que sim. E fazer o som direto foi muito importante para me apropriar daqueles espaços retratados no filme, foi muito importante estar nas locações, vivenciando aquilo.

 

A.S.: Além dos diálogos, você gravou muito “som avulso”, você teve tempo para isso?

E.S.: Bom, foi um set muito rápido. Afinal de contas, a gente tinha um filme extremamente complexo para fazer em pouquíssimo tempo. Ao todo, foram 5 ou 6 semanas de filmagem com uma equipe mega enxuta. Eu fiz o som sozinho, sem assistente; o fotógrafo tinha um assistente de câmera. Mas, com relação aos sons avulsos, eu já sabia durante a filmagem que os diálogos não eram a coisa importante desse filme e que a minha tarefa seria na verdade construir o universo sonoro que circunda o protagonista; o que a gente escuta no filme, à exceção da música não diegética, é o que ele ouve, como o mundo chega até ele. Então, durante o set, eu já estava atento a esse universo sonoro. Então, além do som mono tradicional do som direto, eu também gravei sons ambientes em estéreo. Às vezes, eu me separava da equipe de imagem, em situações onde o som direto não era exigido, e saía para gravar esses sons. Então, no final do dia, eu tinha muito material, era uma coisa gigantesca. Cheguei a ter dias com 300 takes de som.

 

A.S.: E você decupava esse material ao longo do processo?

E.S.: Sim, quando terminava o set, eu decupava. Fazia algumas notas mentais durante a filmagem. Aliás, não ter um assistente é um problema no que diz respeito a isso. Eu ficava sem tempo de documentar as coisas, de fazer um boletim de som… Meu trabalho de som direto nesse filme foi muito pouco ortodoxo, eu fazia coisas que numa abordagem tradicional não seriam bem recebidas: às vezes as locações eram muito ruidosas, a equipe fazia barulho… mas eu deixava as coisas acontecerem ainda assim para preservar um momento específico.

 

A.S.:  Você pode dar o exemplo de alguma cena onde isso aconteceu?

E.S.: Teve uma cena com o Expedito onde o microfone de lapela dele caiu, mas o que estava acontecendo ali era tão incrível, que eu não quis cortar por causa disso. No final, re-escutando o material, eu me dei conta que o resultado sonoro também tinha sido interessante, a voz dele estava com uma textura diferente por conta desse posicionamento errado do microfone no abdômen dele. Eu peguei também uma ruidagem da movimentação dele muito interessante… Isso tá no filme, foi 100% aproveitado.

 

A.S.: Vocês chegaram a dublar alguma coisa?

E.S.: Teve uma dublagem que é quando o Expedito tá na barbearia. A locação não tava fechada pra gente. Então, quando o Expedito falou, algum dos clientes, sei lá, alguém, disse algo também sobre a fala dele. Mas foi a única dublagem do filme inteiro. A gente gravou também muita respiração na pós; isso tem bastante no filme.

 

A.S.: Quanto tempo você levou pra editar o som e mixar o filme?

E.S.: Teve muita coisa que foi sendo construída durante a montagem. Mas, no final do processo de imagem, eu devo ter levado uns 10 dias por rolo, uns 2 meses no total. E eu já ia pré-mixando também durante a edição de som. A mixagem final foi feita no Mega e foi muito rápida: 1 dia por rolo.

 

A.S.: Vamos falar agora do seu trabalho no Jards. Como foi a sua entrada no filme?

E.S.: O Éryk já tinha me falado do Jards um ano antes da filmagem. Desde o início, era claro pra ele que ele não queria um documentário convencional.

 

A.S.: E você conhecia a obra do Jards antes de começar a trabalhar no filme?

E.S.: Algumas coisas pontuais. Aquele disco de 76, o trabalho com o Caetano… Mas eu só tive contato mesmo com essa pluralidade dele no filme. E aí realmente eu fiquei embasbacado.

 

A.S.: Quais são as suas influências musicais?

E. S.: Cara, isso é um leque gigantesco. Não dá pra falar sobre as influências sem falar um pouco lá da juventude, eu acho. Eu tive muita influência do meu pai na infância e no início da adolescência porque ele era fã de rock progressivo. Então, eu ouvia todos o vinis que ele tinha de bandas de rock, de hard rock… eu cresci muito ouvindo isso. Curiosamente tive muito pouco contato com música brasileira nessa fase. E aí, eu acho que essa coisa do rock, da distorção da guitarra, foi me incitando uma curiosidade muito grande em saber o que que era aquele instrumento. Eu não entendia muito bem o porque do som da guitarra ser tão diferente do som do violão. Mas é curioso pois foi sempre pelo viés sonoro… era uma curiosidade pelo instrumento, mas principalmente pelo timbre que ele gerava. Bom, passei muito tempo ouvindo bandas de rock progressivo, psicodélico nessa fase. Depois, por conta da influência de alguns amigos na adolescência, eu cheguei na música eletrônica. Mas essa música eletrônica de pista, né.? Techno, essa onda que começou ali pelos anos 90… E me fascinava muito esse som sintetizado também… essa coisa do sintetizador, do teclado… de gerar sons no teclado e tal.  E aí, aquele contato que eu tive com programação, lá na adolescência, também potencializou essa chegada até a música eletrônica. Era muito mais fácil, né? Porque você tinha a possibilidade eletrônica de fazer um som com uma guitarra, pedaleira e tudo mais… mas de repente você tinha um teclado e um sintetizador que tinha um banco de sons e eu explorava muito isso. Acho que essa facilidade de um instrumento eletrônico, no caso do teclado, de ter timbres, mesmo que sintetizados, muito facilmente acessíveis me direcionou um pouco mais pra esse tipo de música eletrônica. E aí eu demorei um tempo ainda pra descobrir a música eletroacústica. Isso era uma coisa que acontecia junto… Nessa época, eu descobri a música eletrônica mas continuava ouvindo rock.

 

A.S.: Fala, então, desse teu encontro com a música eletroacústica, a tua passagem pelo IRCAM (Instituto de Pesquisa e Coordenação de Música e Acústica).

E.S.: Lá no IRCAM, eu conheci mais aprofundadamente o Stockhausen, por exemplo. Eu tive um contato com ele muito rapidamente durante a faculdade de música que eu fiz aqui em São Paulo, mas não concluí porque eu não me identifiquei com o meio acadêmico da música. A universidade era muito tradicional e eu era um herege porque usava computador nessa época. Então, existia aquela coisa de olhar o computador enviesado: “Ah, você usa o computador porque você é um incapaz de fazer coisas a mão”. Esse purismo me distanciou pra caramba da universidade. Eu mal cursei um ano. Foi, então, que eu descobri o IRCAM e, coincidentemente, o Stockhausen veio pro Brasil em 2001, se não me engano. Eu fui assistir ao concerto dele e achei incrível. A apresentação era ele e uma mesa de som gigantesca, decks de fita analógica e racks de efeitos, reverbs e tal. Ele dava um play nessas fitas todas e ia mixando, manipulando as coisas ao vivo. Isso era o tipo de performance dele. Ele tinha muitas outras, mais radicais. Mas eu ter tido contato com aquilo foi muito forte pra mim. Eu ainda batendo cabeça na universidade, vi que era isso que eu queria fazer, embora tenha sido bem rápido, eu tive contato no IRCAM com um universo de coisas que eu nunca tinha imaginado que existia. Música procedural, por exemplo, e milhões de outras coisas que o pessoal estava desenvolvendo, experimentando. Eu estudei MAX/MSP. Eu já tinha tido contato teórico com MAX, mas não tinha muita ideia do que era realmente. E lá eu vi experiências muito concretas de como era usar isso.    

 

A.S.: Você usa muito o MAX?  Quais são sua ferramentas hoje de preferência?

E.S.: De uns 4 anos pra cá, eu tenho usado duas coisas que eu gosto muito: o MAX for Live, pro Ableton, que é muito mais fácil de usar,uma interface muito mais amigável, e o Reaktor, da Native Instruments, que é um MAX mais bonitinho, com uma interface legal e você consegue programar muita coisa com ele também. Então, o Reaktor é muito mais user friendly que o MAX e eu comecei a usar ele há bastante tempo e me acostumei com a interface dele. Uso bastante pra criar texturas. Com ele você pode programar com muita facilidade. Você já tem objetos prontos, você simplesmente sai conectando as coisas e criando loops e endereçamentos. Então, é muito mais fácil do que você ir no MAX e abrir partituras e criar coisas… Eu uso bastante o MAX for Live e o Reaktor, mas também não me limito a eles. Um sintetizador que eu uso bastante também agora, por exemplo, é o Massive, da Native Instruments. É um sintetizador muito bom em termos de parâmetros disponíveis e de automação, tem muitos osciladores onde você pode mesclar digital, analógico, híbrido ou elétrico… uma coisa maluca assim. Tem vários tipos de onda… Então uso ele já há alguns anos. E aí o Live eu uso muito pra construir essas primeiras experiências sonoras já que ele foi pensado pra performance ao vivo. É muito fácil e rápido criar coisas nele que depois eu passo pro ProTools.                 

 

A.S.: Isso, de certa maneira, remete à sua experiência com o teatro, de criar coisas no tempo real ali…

E.S.: Sim, claro. Tanto que o Live foi uma ferramenta que caiu como uma luva na época do teatro. Eu precisava de algo que não tivesse a dureza do ProTools. Era muito difícil usar o ProTools pra performance ao vivo. Logo que eu ingressei no teatro eu até usava o ProTools. Deu certo, mas era um perrengue pra fazer as coisas rápido e ter resultados. Aí quando eu descobri o Live (acho que tava na versão 4 ou 5 na época) foi um achado.

 

A.S.: Você me disse que ao fazer o filme do Jards você pode aprofundar sua relação com a música dele. Eu queria saber quais coisas você descobriu…

E.S.: Eu descobri que o cara é muito versátil. Ele é incrivelmente versátil. Bom… careta é o que ele não é, né? Por mais que ele faça algo como uma voz e um violão sentado num banquinho, ele pira no jeito que ele toca, como ele canta… às vezes distorce a palavra, às vezes a pronúncia não é clara porque é aquele jeito de fazer dele mesmo e tal… E aí quando eu comecei a ter contato com o material gravado em estúdio, eu fui dar uma ouvida nas mix de monitor que eles estavam fazendo… e aí comecei a ouvir umas coisas muito rock n’ roll. O jeito dele de fazer as coisas, especialmente a música que abre o filme… eu nunca tinha ouvido ele cantar daquele jeito.    

 

A.S.: É “Só Morto” que abre, né?

E.S.: É! Eu nunca tinha ouvido ele cantando daquele jeito, então foi um choque na verdade. Por mais que eu já tivesse ouvido outras coisas dele que tinham uma pegada forte, mas eu nunca tinha ouvido com aquele energia. Parecia um garoto de 20 e poucos numa banda cantando pela primeira vez, sabe? E a banda “comendo” no fundo. Então. foi incrível. Eu fique muito contente de ter aquele material na mão pra poder trabalhar.

 

A.S.: Teu trabalho de mixagem das músicas também é muito bom. Toda sua experiência como músico deve ter contado muito.

E.S.: Sim. O trabalho do Jards é muito encantador e é muito plural. Ele abre com aquela porrada (“Só morto”) e, de repente, fecha com aquele sambinha, tocando com uma caixinha de fósforo e um violãozinho e tal… ele é o sambista mais roqueiro, ou o roqueiro mais sambista que eu conheço, sabe? (risos) Ele transita muito livremente nesses espaços, e agrega elementos de lugares diferentes com uma propriedade muito grande. Eu conheci muita gente que conhece o Jards, conhecia até mais do que eu, mas nunca tinha visto essa faceta dele do jeito que tá no filme… essa diversidade que ele traz no filme.

Falando um pouco da mixagem das músicas, o que a gente queria era um resultado completamente diferente do que se tornaria o CD. Então, a gente queria mesmo desvincular o resultado sonoro musical do filme em relação ao CD. Aí a primeira coisa foi basicamente não ter nenhuma edição dos takes musicais. Tem um ou outro momento de coisas que eu substituí, mas a norma era editar o menos possível do material de estúdio pra manter aquela energia do take, da coisa como estava acontecendo ali.   

 

A.S.: Além das músicas, o filme tem um trabalho de edição de som muito precioso, muitos sons e texturas interessantes criados por você. O Eryk também tem um jeito análogo de trabalhar isso na imagem.

E.S.: Sim, sem dúvida, como estímulo é muito forte o jeito que o Eryk tem de abordar a imagem, e recortar, enquadrar, de pensar os movimentos… é realmente muito estimulante porque não está no campo da representação realista ou simplesmente puramente documental.

 

A.S.:  E o Eryk usa também também essas imagens em super-8 que, se não me engano, são filmes que o próprio Jards fez e que também são acompanhadas de uma sonoridade especial no filme, um barulho de crepitação…

E.S.: Essas imagens do Jards, dele mesmo, do Super 8, tem um ruído do Super 8 ali, mas muito bem trabalhado, processado. Eu usei muito o Reaktor criando transientes ali no meio do caminho e alterando a velocidade. Na verdade, criando camadas múltiplas de velocidade pra que a coisa ficasse rítmica, mas que ao mesmo tempo não representasse o Super 8 tradicional. Também usei vários reverbs criando múltiplas camadas. Eu gosto muito do uso de reverb em geral. Então, trabalhar com tipos de reverb diferentes simultaneamente é muito bacana pra explorar e criar uma dimensão maior das coisas, de tempo e espaço.            

 

A.S.: Existe uma outra imagem/som recorrente no filme e que me parece central nele: a do mar. Você pode falar um pouco do seu trabalho aí?

E.S.: O Eryk já tinha muito claro que o mar seria um elemento presente no filme, como esse lugar de movimento, de modificação, de transição… e também uma analogia ao nascimento do Jards. Tem aquela cena do nascimento dele lá na frente, quando ele mergulha e o mar cai sobre ele. Bom, pra trazer essa textura do mar pro filme eu acabei trabalhando com algumas camadas simultâneas. É sempre muito difícil ter um único mar, uma única textura, ou uma única gravação do mar que seja. Uma gravação capaz de cobrir toda a possibilidade sonoras que o mar teria. Então eu cheguei 4 ou 5 mares diferentes, de sons ou takes diferentes, e que eu trabalho simultaneamente com pelo menos 3. Então cada um deles tem uma característica específica, tem uma dinâmica, uma equalização, uma reverberação, uma posição na sala, para que a experiência seja de imersão nesse espaço. A forma como eles foram mixados também varia: às vezes um surge mais, outro menos e assim vai… criando esse desenho. Então, é uma textura complexa pra que ela se torne natural. O cara vai lá ouvir e realmente vai achar que é um mar, e não um mar que o cara vai ouvir e vai falar: “Poxa, esse é um mar fake”. E isso tem a ver com o que eu disse: é muito mais importante pra mim a experiência do espectador como imersão. Seja pela sutileza e simplicidade ou pela complexidade, mas que a técnica não apareça: que a recepção do meu trabalho seja só sensorial.

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