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Oct 26 2014

Sonoridades no Cinema Brasileiro: Márcio Câmara e o som de “Cinema, Aspirinas e Urubus” – PARTE I

Guilherme Farkas

Em junho de 2013, iniciei, como aluno do curso de bacharelado em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense, uma pesquisa de iniciação científica orientada pelo professor Fernando Morais da Costa. Tinha o objetivo de estudar as sonoridades em alguns filmes no cinema brasileiro contemporâneo e de aproximar as experiências vividas no âmbito da realização do sonoro com um pensar mais acadêmico. Ou seja, fazer com que a realização sonora e os profissionais de som no cinema brasileiro tenham suas produções ligadas também a um pensamento mais teórico. Logo, juntos Fernando e eu, escolhemos quatro filmes brasileiros realizados no período entre 2005 e 2013. Realizei entrevistas com cinco profissionais de som ligados aos filmes eleitos. A partir de leitura bibliográfica sobre som no cinema e das entrevistas realizadas, redigi um artigo tentando relacionar as experiências que passaram tais profissionais e uma leitura mais teórica sobre som no cinema.

O resultado disso foram as transcrições das cinco entrevistas e a redação de um artigo científico. O que compartilho abaixo é a entrevista realizada com Márcio Câmara. Tendo como norte sua experiência na realização da captação de som direto do filme “Cinema, Aspirinas e Urubus” (2005) dirigido por Marcelo Gomes.

Em ocasião da publicação no Artesãos do Som, a entrevista foi divida em três blocos: I- História e início no som, II- Experiência na captação de som direto no filme Cinema, Aspirinas e Urubus (Marcelo Gomes, 2005) e III- Panorama atual da figura do profissional de som no mercado audiovisual.

marcio camara

PARTE I: História e início no som

Guilherme Farkas: Como se deu sua aproximação com o cinema?

Márcio Câmara: Eu sou de Fortaleza e querendo fazer uma coisa diferente eu fui para os EUA no começo dos anos 1980, fui e fiquei 15 anos. E foi ai que comecei tanto minha formação acadêmica quanto profissional. Tenho uma formação em cinema lá e nos dois últimos anos da faculdade já comecei a fazer trabalhos com amigos, produtoras de São Francisco que faziam vídeos institucionais. E um simples dia alguém precisou de um assistente de som, comecei e não parei mais. Fui microfonista durante dois anos, fiz bastante coisa em Los Angeles, Hollywood, fiz séries, longas metragens…

G.F.: A faculdade era aonde?

M.C.: São Francisco… E ai comecei a mixar minhas coisas, comprei meus equipamentos, Nagra, naquele época tinha dois….E comecei fazendo….a linha que comecei e que mais gosto, engraçado que estou me inclinando mais para esse lado agora, é o documentário…Porque a própria universidade é muito famosa pelo gênero. Principalmente porque nas décadas de 1960, 1970, São Francisco e Berkeley eram politicamente mais agitadas, sempre foram mais a frente do que o resto do país. Relação com direitos humanos, saúde, educação eles sempre tiveram atitude mais de confronto. Com isso várias gerações de documentaristas se formaram lá…Então essa questão do documentário e do som no documentário foi muito importante para mim. Um professor que me foi muito importante e basilar foi o Bill Nichols, ele tinha dois compêndios, um era o “Movies and Methods”, ele organizava varias coisas e já na década de 1970 e 1980 existiam críticas a esses modelos… Outro professor que me deu um curso lá foi o Rick Altman, ele já começava na década de 1960 e 1970 a aprofundar seus estudos no som e no cinema… Então para mim essas pessoas, os professores e esse entorno da Universidade e da cidade foram muito importantes para seguir nessa busca mais de som. Depois que eu comecei a fazer, e quando você começa a trabalhar profissionalmente e se gosta, as coisas andam e você já está encaminhado. E eu sempre tive a ideia, como imigrante, de voltar para o Brasil. Alguma hora aquilo ali poderia encher meu saco, no sentido da sociedade no geral. Se você não quer se “vender” ao sonho americano de consumo…meio pasteurizado, falta de cuidado com o resto do mundo é muito facil… Eu conheço muito gente que ficou. Foi comigo no “navio-negreiro” e por lá ficou, nada contra. Eu só acho que para mim eu queria construir uma história no Brasil, porque acho que o Brasil ainda não tem uma história construída em relação ao audiovisual. Meu conhecimento, as coisas que eu tinha aprendido eu achei que poderia ser mais útil aqui. E assim eu acabei retornando, voltei para o Brasil não para o que seria um centro urbano…

G.F.: Que ano você voltou?

M.C.: 1997, 1998. Durante os anos 1990 eu fiquei quase 2, 3 anos num pinga pinga maluco. Fazia um filme voltava, fazia dois filmes voltava. O que é uma loucura… Se você está se dividindo entre Rio e Fortaleza beleza, Rio e Manaus ainda vai, mas se você vai para outro país é meio complicado. Quando voltei, era quase desconhecido no mercado brasileiro. E era uma época que a gente saiu do marasmo total do Collor, os filmes começaram a engrenar, Retomada, meio dos anos 1990. E quando eu decido voltar eu vou para Fortaleza, também por motivos afetivos, eu tinha ficado 15 anos longe da minha família, dos meus pais…tava querendo casar, ter filhos e achei que ali era o local apropriado. E assim o fiz. E dentre outros aspectos também foi importante porque Fortaleza era um centro desguarnecido, hoje isso mudou. No meio dos anos 1990 quase não tinham técnicos, quase não se tinha equipamentos, quase não se tinha nada ali. Para fazer filme tinha que pegar equipamento no CTAv, chamar alguém para fazer o som… E com isso eu comecei a fazer várias coisas ali perto, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Belém o próprio Ceará, sempre fazendo som. Porque na realidade eu fiz um curta-metragem do Marcelo Gomes chamado Clandestina Felicidade que é a história da Clarice Lispector. Concomitante a isso, eu já tinha feito vários super-8 meus, ja tinha dirigido, fiz dois filmes em 16mm. E eu tava também afim de fazer minhas coisas… E nessa minha volta eu me encaixo dentro do processo mais político do audiovisual. Fui presidente da ABD local exatamente para começar a pressionar o governo para ter um edital de audiovisual. Isso rendeu e logo após eu consegui implacar um projeto que foi o Rua da Escadinha 162 que até hoje passa por ai ganhou 30 prêmios foi para vários festivais internacionais, ganhou o Oscar aqui da academia e ai comecei a fazer vários projetos meus. Ao mesmo tempo fazendo som também. Agora estou correndo atrás de um projeto, estou indo para África fazer um longa-metragem, foi um edital que ganhamos também. Ou seja, tem uma hora que Fortaleza se esvazia e eu venho para o Rio também por conta da minha mulher que veio fazer douturado na Universidade Estadual do Rio de Janero  (UERJ) e eu também estava querendo fazer outras coisas. E aqui no Rio quis adiantar outro lado da minha vida que é minha formação acadêmica. Dou oficinas de som e de estética sonora há 15 anos. E ai me engajo num projeto social que é formação de mão-de-obra de várias áreas do audiovisual. E eu coordeno a área de som. Terminamos agora a terceira turma. Lá a formação é de microfonista, de palco e operador de som. São três vertentes que eu proponho dentro do curso. É voltado a população de baixa que renda que não tem a oportunidade de ir para uma universidade mas que podem entrar para o mercado de trabalho. E temos tido ótimos retornos… E esse é um outro lado que para mim está funcionando bem, também agora com o mestrado voltar para sala de aula é bem difícil. Mas acho que estou dando conta do trabalho. Lógico que ainda tem muita coisa para ser feita mas a minha intenção é perguntar porque que é que o trabalho do técnico de som no audiovisual ainda é algo tão invisível. Sem ter uma conotação de coitadinho ou de menos favorecido, mas é um trabalho muito pouco estudado. Na introdução da minha dissertação que fiz numa disciplina de Métodos de Pesquisa, no mestrado na Universidade Federal Fluminense (UFF), eu enumero as questões. Começo dizendo que já partimos de um momento em que há bibliografia disponível mas ao mesmo tempo é recorrente em várias questões, por exemplo eu cito a revista Filme Cultura n.58 (O Som Nosso de Cada Filme) que tem entrevista com editor de som, com pesquisador, com historiador, com fotógrafo e não tem nenhum técnico de som direto falando. Outro dia passou um programa no Canal Brasil chamado “Em Alto e Bom Som” e você vê a programação: entrevista com Fernando Morais da Costa, Hernani Heffner, Breno Silveira, uma pesquisadora de São Paulo e tem até o Walter Carvalho que é fotografo e não tem nenhum técnico de som direto. Aí você se pergunta, esse pessoal não tem voz? Eles só apertam botão, o que eles fazem? Seria esse o papel deles, meramente técnico? Eu então estou enfronhado nessa questão, se existe algum processo criativo no trabalho do técnico de som direto ou se é uma questão absolutamente técnica. Qual sua função real numa equipe? Por que é que ele é tão invisível? Acho que vou ter muito tipo de resposta mas se pelo menos conseguir levantar essa discussão para mim já é algo importante.

G.F.: Como você se aproximou do som no cinema e mais específicamente do som direto? Porque muitas pessoas que trabalham com som no cinema tem uma formação ligada a música ou a composição musical. Queria saber se você faz ou fez parte do ambiente musical de alguma forma. 

M.C.: Tem muita gente que não encontra trabalho fazendo música, sendo compositor e encontra espaço como técnico de som para audiovisual em geral. E isso não é mérito ou desmérito, somente uma constatação. E isso é uma coisa que eu pergunto sobre a escuta, se a pessoa escuta de forma singular ou não. Assim como um fotógrafo consegue fazer mil maravilhas para enquadrar uma pessoa de determinada forma, somente um condicionamento da escuta é capaz de tornar o trabalho do técnico de som mais criativo. Saber se um determinado bate-estaca na locação vai estar tomando conta do diálogo dos atores ou se posso utilizar essa relação sinal ruído para que a situação se torne mais compreensível numa determinado momento. Por exemplo, imaginando que teriamos uma cena de ficção aqui, quais seriam os elementos, ambientes e ruídos possíveis de serem captados para serviram à edição de som no processo de pós produção? Isso pode tornar todo o processo de captação de som muito mais criativo. Eu escuto música desde sempre, toco alguns instrumentos mas não me considero músico. E não acredito que isso seja ruim para meu trabalho. Até acho que as pessoas que vem da música, vem com um certo purismo… Aí também é engraçado, tem um lado do técnico de som que ele tem que ter um bom ouvido claro mas é muito importante que ele tenha qualidades como a sociabilidade e interação. Algo que ás vezes as pessoas que estão acostumadas a ficar no estúdio tocando, improvisando, sozinho, não tem. Então quando chega num set e não consegue estabelecer uma boa relação de diálogo, de poder negociar coisas. Aí você logicamente aprende coisas. Mas aquele mundo do estúdio é bem diferente do lugar com sessenta, setenta pessoas juntas querendo filmar um determinada cena. Nesse aspecto também o tempo lhe possibilita o acúmulo de experiências, o tempo e os resultados. “Ah, tomei uma decisão aqui foi assim com microfone tal apontado não sei para onde”. Vamos ver o filme na tela, ahn ficou bom, ficou ruim, ficou baixo. Nesse sentido acredito que o trabalho tem um empirismo muito grande. Porque se você enquadra uma pessoa, mais para direita mais para esquerda, da para ver. E o som não acompanha isso. Por mais que eu posso fornecer uma referência, o resultado final nunca vai ser aquele. Não é como na imagem que você tira cor, adiciona cor. No som a construção é muito maior, o estágio é muito maior. Desde sua captação até a hora que ele é mixado… até na hora que ele é projetado também! Não adianta nada você fazer algo primoroso e na hora que o filme é exibido algumas caixas não tocam, ou só toca de um lado…

G.F.: Você falou que quando estava nos EUA, em algum momento alguém precisava de um assistente de som. Você então começa a trabalhar com som por mero acaso ou já imaginava que iria construir uma carreira nessa área?

M.C.: Foi por acaso sim, não posso lhe dizer que meu sonho sempre foi fazer som… Não foi assim. Mas o que aconteceu foi que uma vez eu coloquei um headphone na cabeça e comecei a entender o mundo de outro jeito. Aí sim… Quando eu pude parar e… tem aquela história, escutar o silêncio, o som do silêncio ele é importante para você entender o barulho, a relação do barulho. E quando você começa a ouvir, a ter um parâmetro de silêncio, você começa a ter a sua escuta.  E no set de filmagem pouco gente compartilha disso. Aquele fone de ouvido que a gente manda pro diretor, muitas vezes nem bota, nem ouve nada… E logicamente todo mundo ta lá vendo o monitor, o pessoal da arte, do figurino da maquiagem, todo mundo quer ver se a maquiagem ta boa. A imagem é compartilhada por vários departamentos… O som nem tanto. E para mim foi um questão bem simpes, vou ser bem sincero mesmo…Quando eu vi que para fazer câmera tinha que ser terceiro assistente, segundo assistente, primeiro assistente pra finalmente…ah não. Aí vejo o cara lá da maquinária tem assistente, best boy, ah quero fazer esse negócio aí não… Vou entrar aqui e de repente eu compro um Nagra e vou fazer meus documentários que é a coisa que eu mais gosto. E foi… Logicamente que fiz muita ficção mas sempre gostei mais de documentários. Tem uma coisa muito importante também pra minha vida e minha carreira, fiz lá meus quatro anos de universidade que claro que é um conhecimento determinado, importantíssimo… Mas quando você cai no campo, vê o quanto isso tem que ter uma complementação, isso se você quer estar ali fazendo. Não estou falando se você tem uma linha teórica, quer dar aula, se a intenção é mais estar em seminário, congresso esse tipo de coisa. O mundo acadêmido também tem seu universo seu jeito. Mas quando eu comecei a fazer, a filmar, ai eu aprendi não só coisas de som como aspectos de direção com vários diretores que eu estava ali trabalhando. De várias maneiras, de vários jeitos, não só sonoramente. E hoje eu vejo pouquíssimos que tem uma relação mais criativa com o som. Isso aí é fato!

G.F.: Diretores?

M.C.: Sim! Isso é fato…É muito mais fácil… Quando voce lê um roteiro por exemplo: “dai fulano pegou a bolsa e tem um campo, uma casa…” O diretor vai descrever muito mais a imagem do que o som. As vezes indica uma música… E isso é geral… As vezes consegue conciliar a imagem com a audição de forma criativa…Talvez no set de filmagem, no dia-a-dia consegue pedir coisas. O técnico de som fica lá fuçando perguntando se vai ter determinado elemento sonoro… pergunta a opinião do diretor, sugere uma determinada ambiência sonora para um cena gravada dias antes… Você está também imerso no seu processo criativo tentando trazer coisas para o diretor. Mas se você traz possibilidades e nada, tenta uma, duas vezes e se não houver resposta, não vai mais trazer nada. Mas se tiver um retorno por parte do diretor, o filme ganha muito! Hoje em dia eu já posso ser bem sincero, eu parei de tentar salvar o mundo digamos assim. “Não, o filme é ruim mais o som vou fazer uma coisa maravilhosa, vou na minha folga pegar algumas ambiências, conversar com meu assistente para ir num determinado local buscar alguns sons….” Esse tipo de coisa que eu não faço mais hoje em dia. Sério… Eu faço do tamanho que me dão. Se o cara chega para mim e fala: “olha que quero esse som, quero isso, quero aquilo”,  logicamente que eu vou fazer… Mas se não… Acho que com o tempo você vai ficando mais envernizado, saber até onde se pode ir. Porque o cansaço desse tentativa vai lhe minando com o tempo. Eu tenho preferido… Está certo que eu to na minha terceira remontagem como profissional… Ta certo que lá em São Francisco depois de dois anos eu já tinha uma rede de contatos. Toda vez que você sai, muda de cidade, depois de construir uma rede, de trabalhar direto, depois de dois ou três anos vai embora…Vai pro Nordeste, vai pra não-sei-onde, você começa tudo novamente. Para com isso aqui, vem pra cá, vai pra lá. Agora aqui no Rio, depois de anos que as coisas começaram a engrenar… Engraçado, outro dia um sujeito me ligou, aliás que eu conhecia, eu achava que conhecia, dizendo: “ah, eu não te chamei porque eu não sabia que você faz filme grande…” Sabe, o problema não é a pessoa, não é ela, o problema sou eu. Não tenho essa atitude de ser uma pessoa falante demais, de me expor muito. Eu fico na minha, se o telefone tocar aqui eu vou atender. Engraçado, agora mesmo… Eu to num impasse, isso é um sinal dos tempos! O Walter Lima, com quem eu já filmei bastante, vai filmar agora eu já tinha falado com ele  mas sinto que as coisas já estão andando e eu estou ficando de fora. Mas pela primeira vez eu não estou achando isso ruim! To com minhas coisas pra fazer, meu mestrado, meus filmes, to fazendo pequenos documentários, ta chovendo de reality show. Engraçado, você está se renovando aos cinquenta anos de idade você fica… Não que você tenha que comprovar para pessoa que você já fez filme grande e etc. É um tipo de desafio a você mesmo que acho que é saudável. Mas aonde vai bater isso eu não sei. Mas tem outra leitura que eu faço, que agora que eu to fazendo meus filmes eu sou visto como concorrente… Outro dia o Beto Brant, que eu fiz o último filme dele o Eu receberia as piores notícias dos seus tristes lábios, não sei porque ele me ligou que disse: “pô não sabia que você tava fazendo som ainda, achei que tava dirigindo suas coisas…”. Até parece que eu posso disistir de tudo, armar minha cadeirinha de diretor. E as contas, o leite das crianças? Ou seja as pessoas me veem como concorrente. Você só pode ser uma coisa, só pode ser caneta, não pode ser lápis. Você não pode ser acadêmico, estudar, só pode ser técnico. Não, você não pode ser técnico, só pode estudar. Parece que é uma coisa estanque assim. E eu vejo muitas pessoas me perguntarem se eu estou dirigindo, fazendo minhas coisas. E eu falo que sim, também né, legal. Por que não? Eu acho até que assim, entrando pra fazer som num filme de alguém eu posso contribuir mais, ser mais colaborativo. Talvez coisas que uma pessoa que está só lá apertando botão como técnico de som não tenha vontade de interagir. Decupagem por exemplo, e várias outras questões. Mas é aquela coisa, cada um no seu processo… E o que foi importante para mim, não só fazer o som direto, mas acompanhar e ir até a mixagem, isso é importantíssimo! Aí você vê… as decisões que você tomou lá para trás aquilo que pensou antes o que significou lá na frente. Essa questão do treinamento auditivo, isso é crescente, está sempre lhe desafiando. Cada vez mais as locações e as cidades são mais barulhentas. É locação com serra elétrica, do lado das obras do Porto Maravilha (recentes obras na região portuária da cidade do Rio de Janeiro, em ocasião da Copa e Olimpíadas). O fotógrafo adorou achou linda, vamos fazer aqui, se vira! Ou seja, os desafios sempre aumentam… E essa coisa da tecnologia mudar, você pode acompanhar melhor esses desafios. Com equipamentos de vinte anos atrás eu não poderia encarar as coisas que me são propostas hoje em dia. Reality shows não tinha a vinte anos atrás, vinte pessoas, vinte lapelas sabe… Se vira, aí da tudo certo (risadas). São coisas que também tecnologicamente você tem que ficar atualizado, o que é que existe, o que não existe, o pode ser feito o que não pode. Tudo relacionado sempre com a questão da escuta.

G.F.: Como você vê o trabalho do técnico de som direto no set de filmagem e as relações entre pessoas? Como você se relaciona com os diretores na pré-produção? Você participa de análises técnicas de roteiro? E no set, como se concretizam essas ideias? 

M.C.: Sobre o set: é uma negociação mortal todo dia. Eu acho que você tem que escolher seus atalhos. Numa caso de uma longa-metragem são dois meses de guerra. Porque na minha pesquisa de mestrado eu pergunto ao Paulo Ricardo, Valéria Ferro, Jorge Saldanha, porque o produtor tal vai chamar o técnico X ou Y? Porque tem uma sonoridade tal? E as respostas sempre se encaminham para um lado mais do relacionamento… Ah porque fulano posta isso no facebook, ciclano distribui pirulito no set… Esse enquadramento é engraçado porque aqui no Rio de Janeiro tinha um (técnico de som) holandês maluco, o Mark Van Der Willigen, que fez carreira aqui no Brasil, formou muita gente nos anos 1980, era o único no Brasil que tinha um Nagra Estéro. Ele fez bastante filme. Mas era completamente doido no relacionamento (no set). Tipo… o cara ta filmando e ele entrava no meio da cena falando que não tava pronto ainda… Bem desrespeitoso, uma pessoa agressiva. Mas um dos melhores técnicos que já passou opr aqui, sabia tudo de traz pra frente. Não só na questão de ter um bom equipamento mas de fazê-los funcionar, em vários sentidos. Mas o engraçado é que você vê que essa relação do técnico entre o conhecimento e o social é muito importante. Mesmo porque você não pode ficar o chatinho, o coitadinho, o lascadinho que ta num dia de filmagem. Porque se não todo mundo vai encher o seu saco. Porque como eu disse, você está muito numa posição de resolver problema. Algo como: “como vamos fazer essa gravação aqui sem ter que dublar depois?”. Tem que utilizar todas as armas e possiblidades que existem. Aí tem uma coisa interessante, um outro lado da moeda. Eu sempre tento juntar todo mundo pra resolver o probema. Então chamo alguém da maquiagem, da produção. Aí chega alguém e diz que te uma serra ali e ta com pena de mim… Não tem que ter pena de mim, tem que ter pena do filme. Eu vou fazer do jeito que for, com cachorro, com serra da forma que tiver aqui. Vai ficar ruim para o filme, para você que faz maquiagem, para você que faz produção. Eu acho que nesse sentido é tudo junto. Se a pessoa não tiver essa noção da coletividade, coletivo como sempre foi, aí vão pensar o som, a imagem, a maquiagem, o filme como um todo. E nisso, se a gente segmentar os departamentos, “o som isso aqui, a imagem aquilo outro”, só gera esse tipo de comentário. Assim você está sempre aliciando as pessoas que se tirar o cachorro de perto da locação vai ser bom para o filme. Se esperarmos um pouco para que o caminhão de lixo passe, vai ser bom para o som do filme. Ou não também, dessa maneira você ta negociando sempre para que possa ganhar… Os microfonistas que trabalham comigo sabem, uma atitude boa com o fotógrafo para conseguir colocar um microfone mais perto da cena, ver como que pode tirar um determinado ruído elétrico. Tudo isso é negociação. Então saber também essa questão social é importante. Por isso que eu volto na questão do músico parado dentro do seu mundinho… Isso também faz parte das qualidades que um bom técnico de som tem que ter, desse conhecimento. Tem uma frase bem legal de um técnico americano que diz que o técnico de som é meio um alquimista porque ninguém no set sabe realmente o que ele faz, meio também agente do serviço social que fica negociando tudo o tempo todo… É meio que isso… Saber ganhar as pessoas, logicamente que não pode esquecer que você tem que fazer o melhor que pode, sempre procurar a melhor maneira para que aquele som tenha a melhor qualidade possível. Mas só você não vai conseguir fazer o negócio andar. É conseguir informar, passar a informação adiante para todo mundo junto. E também ter o diretor jogando junto com você. Quando ele (diretor) sente que você quer o melhor para o filme sem imperrar a coisa, porque não adianta também você está lá falando que não deu, que está ruim, que tem que repetir. Quando você não está só nessa atitude de implicância, de também não entender que o filme não é só sonoro, certas batalhas você pode ganhar. Você pode não ganhar todas, mas a guerra sim você tem que ganhar. A batalha do dia-a-dia você tem que negociar sempre o máximo…

G.F.: Queria saber como se dá sua relação com os diretores dos filmes na fase de pré-produção. 

M.C.: Alguns eu consigo conversar, alguns tem algo para passar. Alguns realmente não tem ideia do que o som direto pode oferecer de possibilidade. Muitos só olham para sua cara e falam que não querem dublar o filme. Beleza, então me dê condições para que a gente não duble o filme. Mas alguns eu tenho uma interlocução melhor. Algumas coisas durante o filme… Na boa, eu tenho conversado com vários técnicos de som e nunca é uma coisa que ele é chamado. Para você ter uma conversa estética ou para uma conversa séria sobre a criação do filme… Por exemplo quando o diretor ta decupando uma cena tal, você não é nem chamado para essa decupagem… Se é uma questão de grana, se o produtor não tem dinheiro para lhe bancar ou se é somente uma questão de atenção… Isso é um mistério grande que eu adoraria saber. O que eu sei é que pela questão orçamentária você nunca é incluído nesse tipo de conversa. Eu consigo contar na mão quantas vezes eu tive essa participação criativa nos filmes. E eu não quero dizer com isso… Lógico que esses filmes são filmes importantes e até hoje estão lá na filmografia brasileira e em outros lugares do mundo. E tenho certeza que esse tipo de contribuição só tem a acresentar, fazer filmes melhores. Mas eu não tenho como falar para o produtor que eu tenho que estar lá se ele mesmo não entende isso como algo bom e necessário para o filme como um todo. O Walter Lima Junior é um cara que eu tenho diálogo. Por exemplo ele fez adaptações literárias como o A Ostra e o Vento (1997). Eu pego o livro, leio e vejo que tipo de indicações sonoras eu construo e posso incluir dentro do filme. São diretores que eu tenho um bom diálogo. Se eu não tenho condições durante o filme de criar essa realidade sonora, eu faço isso depois.

Eu fiz isso no filme do Beto Brant, Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2012), fiz isso no filme da Sandra Kogut, Mutum (2007). Fico mais dias nas locações só para fazer uma relação de sons que eu preciso…

G.F.: Para gravar?

M.C.: Sim, ambientes, sons específicos daquele lugar. Faço um mapa sonoro geral de cada sequência desde ruídos de sala até coisas maiores como uma ambientação. Coisas que você nunca tem condições de fazer direito quando lá estão (no set) cinquenta pessoas impacientes… Porque ninguém consegue se escutar… Quando você pede um minuto de silêncio, quando dá dez segundos já acham que deu um minuto. É engraçadíssimo. Trinta anos fazendo isso e percebo como as pessoas são inquietas, não tem a capacidade de se escutar. E nisso toda vez que você quer fazer um ambiente tem lá um cara andando, batendo não sei aonde e diz que não imaginava que saia no microfone. Pois é, foi pedido para você ficar parado e calado mas parece que não conseguem. Esse tipo de situação é recorrente. Então quando a equipe vai toda embora fico eu e meu assistente gravando sons. Mas isso claro, são casos a parte. Tem gente que toda vez que vai filmar me chama. Tem um porque… Tem uma amiga minha lá de Belém, que eu ja fiz seis filmes com ela. Ela vai fazer seu primeiro longa agora em agosto e vou  lá filmar com ela. Desenvolvi um certo tipo de relação que ela tem total confiança na construção sonora que eu faço. Sabe que quando tem mais possibilidades eu trago isso para dentro do filme. Até coisas que ela mesmo não sabe ou pensa alguma coisa, passa para mim e vou além com as indicações dela… Essas são as pessoas que eu gosto de trabalhar. Por isso que eu digo que o técnico de som não pode ficar lá sentadinho esperando que as coisas comecem e acabem. Com o tempo também você vai vendo que todo filme vai ter o som que merece. Você pode até pedir para o produtor para você ficar dois ou três dias a mais. Mas se ele acha que isso não é necessário, você faz o que? Fica lá por sua conta? Não dá né… O máximo que você pode dizer é que tem uma série de sons que poderiam ser gravados, uma série de ruídos, de ambiências e que se a produção disponibilizar um carro para gravar tais sons, isso pode enriquecer o filme. Mas muitas das vezes as produções transparecem que isso não é interessante ou nem mesmo é relevante. O máximo que eu posso fazer é tentar. Sempre levar a informação do que está acontecendo e não ficar fechado. Novamente a questão da interação é muito importante.

G.F.: Você acha que no caso desses filmes em que você trabalha, se o técnico de som não é chamado na pré-produção existe algum outro profissional que está pensando o som desde o começo até o fim, até a mixagem? 

M.C.: No Brasil não, talvez nos EUA sim. No Brasil quando começa o filme não se sabe nem quem é que vai editar e dai por diante. Quem está sempre pensando o filme aqui no Brasil é o diretor, por vezes junto com o produtor. E o diretor está sempre muito ligado na questão da dramaturgia, da imagem. E só vai resolver a questão do som na edição bem mais adiante. O que ele quer ali na hora é que o técnico seja o menos intrusivo, o menos chato e que o diálogo seja gravado com qualidade. É isso que ele quer, a realidade pura a simples é essa. O Luiz Fernando Carvalho, que fez o Lavoura Arcaica (2001) por exemplo, você chega lá, primeiro dia de filmagem gravando e entre dois planos você diz que precisa gravar um minutinho de silêncio e ele responde “Não, não! Não preciso disso não, não quero”. Bom beleza…Vamos lá, no segundo dia de filmagem o ator, (Selton Melo) num determinado plano ele está andando e chorando ao mesmo tempo. Depois que gravamos o take peço para não dispersar para poder gravar algumas coberturas e ele (Luiz Fernando Carvalho) fala “Não! Não! Não precisa disso não!” Aí então depois de duas, três vezes você desiste. E volto a dizer, tudo é uma questão de informação. Vou lá até o produtor e digo, está acontecendo isso, isso e isso. Mais adiante você vai precisar, ”Ah não! Não faça isso”. Bom no caso é você que tem que conversar com ele porque eu já estou tentando. E claro que depois eles iam lidar com esse problema. Depois de dois anos me ligam perguntando onde está o ambiente tal. E eu digo para eles perguntarem para o Luís Fernando que ele deve saber. O que eu quero dizer é que este tipo de exemplo… Eu quase desisti do filme, era tanto desrespeito que eu pensei em sair. E isso que ele começou como microfonista, começou no som hein. Bom nesse caso você pega, o cara queria que eu fosse o mais invisível possível para ficar gravando minhas coisas. Não posso fazer nada mais do que é refletido no meu trabalho. Essa parte da criação então tem que ter muito a ver com o que o diretor traz e ele leva e a tua interação com ele. E isso geralmente ele só vai ter essa leitura e essa percepção sonora na hora que ele tiver acabado a montagem de imagem para daí sim começar a pensar no som, o que talvez seja um pouco tarde. Porque se eu estou lá em Nova Iorque mixando A ostra e o vento e preciso de um vento batendo em rocha lá da Ilha do Mel (Paraná) como vou conseguir aquilo? Vou sair ali em Manhattan para gravar aquilo? Como eu vou fazer isso? Se você não tiver isso o máximo que vai conseguir é um ambiente do “library  BBC” que você vai encontrar e vai ficar como qualquer outro silêncio. Mas quando você dá essas outras opções porque você esteve lá no local de filmagem gravando sons, fica muito mais rico! Mas isso, eu volto a dizer, você só consegue a partir de… são coisas de diretores naquele momento, no ato da filmagem, que estão preocupados com isso. Mesmo que talvez ele não saiba, mas ele está interessado, já é uma coisa. Você tem esse caso do Luis Fernado que é um caso pontual. Logicamente que o filme é aquela coisa de louco, um monte de coisa. Mas é um exemplo de como você talvez se tivesse feito de outra maneira, se tivesse ganho mais  com alguns sons ambientes… Porque a gente estava lá no interior de Minas Gerais não sei de onde… Mas no final não tem o som do Lavoura Arcaica, tem o filme Lavoura Arcaica. Tem imagem, som outras coisas e o filme. Tudo junto para construir o filme. Nenhum é maior ou melhor que o outro mas tem que se contruir em relação a isso.

Continua…

2 Responses to “Sonoridades no Cinema Brasileiro: Márcio Câmara e o som de “Cinema, Aspirinas e Urubus” – PARTE I”

  • Laura Says:

    Boa tarde, estou estudando o mesmo tema da música no cinema, com ênfase da sua influência na interpretação do espectador. Sua pesquisa está disponível? Tenho interesse na sua reflexão e ponto de vista. Obrigada. Laura.

    • guilherme farkas Says:

      olá laura! fico feliZ com seu interesse!! posso enviar por email! deixe aqui seu contato. O artigo será publicado em dezembro desse ano na revista Laika da ECA-USP. mas enquanto nao é publicado te mando por email!!! valeu!

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