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Feb 16 2012

Entrevista com o técnico de som direto João Godoy: Parte II

Dando continuidade a entrevista com o técnico de som direto João Godoy, segue a última parte.

 

Hugo Reis: Até onde você acha possível a captação de som interferir nessas decisões de mise-en-scène, de escolha de locação e etc.?

João Godoy: No caso da mise-en-scène, o limite para a interferência é a função narrativa da cena, você não pode propor alterações que descaracterizem a função narrativa da cena. Em relação a escolha de locação, pela minha experiência, depende fundamentalmente da estrutura de produção, do tamanho do orçamento, depende da capacidade da produção. Esse é o primeiro dado. Por exemplo, se é uma produção que tem baixo orçamento e a produção consegue uma casa de graça pra fazer o filme, é isso! A casa que você tem é aquela! Ah, mas tem barulho, tem rua, tem vizinho, tem cachorro, você não tem como resolver. Então existe um primeiro determinante que é orçamentário. Porém, depende também da posição do diretor. Quando o diretor preserva o som direto, quando o diretor entende a importância do som direto e aposta num bom som direto, toda a dinâmica de funcionamento da equipe é pautada por essa postura. Roberto Moreira é assim, Tata Amaral é assim, com o Jerê Moreira, que eu fiz o “O Menino da Porteira”, também foi assim. Existe esse condicionante, o quanto que o som direto consegue interferir varia de diretor pra diretor e também depende da postura do técnico de som direto.

Tem uma fala genial do Chris Newman que diz que a primeira função dele num set de filmagem é fazer as pessoas entenderem o que é o som direto e quais as necessidades do som direto. Porque quando as pessoas entendem quais são essas necessidades, elas passam a “jogar junto” com o técnico de som. Disponibilidade, espírito de trabalho coletivo e características pessoais também influenciam. É engraçado, quando você começa um longa, de cinco, seis semanas, na primeira semana a equipe é geralmente muito barulhenta, ela ainda não percebeu que não dá pra ser daquele jeito. Então, com um trabalho gradual – conversar com o gaffer, com o maquinista, mostrar disposição para o trabalho, às vezes tem que dar esporro, às vezes tem que ser no tête-à-tête, tomar uma cerveja… – você consegue a atenção da equipe para as necessidades do som e aí é genial. Quando essa sintonia é alcançada, é muito comum, por exemplo, se numa cena um ator faz um movimento, ele mexe num objeto e faz um barulho absurdo, bem no meio da fala dele, às vezes, o próprio ator interrompe a cena e fala “nossa, acabei com o som do João!” Isso é genial, porque você percebe que existe uma preocupação com a captação do som, os atores também estão ligados, e tem que estar mesmo! E não com o meu som, obviamente, mas com o som do filme que ele está fazendo. Quando isso ocorre é muito estimulante e indica que se alcançou uma sintonia no trabalho.

 

Ana Luiza: Você acha que a compreensão do funcionamento da pós-produção ajuda a compreender o som direto?

JG: Com certeza! Quando você entende que pode validar um plano de som se deixar um “rabichinho” a mais desse som, mesmo que, em termos do padrão técnico ideal, você esteja com um “fundo” – com um ruído ambiente – um pouco acima do que seria o ideal, você pode criar condições para a edição suavizar a saída ou a entrada desse plano de som. Se você deixar um “rabicho” desse som, você vai poder sair desse plano em fade. Você pode chegar para o diretor e falar “dá pra valer esse plano desde que você não fale ‘corta’ no final da cena, deixa a equipe em silêncio, corta a câmera em silêncio e me dá cinco ou dez segundos de som”. Então, conhecer a edição de som pode ser um diferencial.

 

Bernardo Marquez: Você costuma ter alguma conversa com o editor de som direto, com o editor de diálogo?

JG: Infelizmente isso é raro. Num mundo ideal esse encontro entre editor de som e técnico de som direto deveria acontecer durante a pré-produção, em algum momento da análise técnica, para que certos conceitos fossem definidos que pudessem nortear o trabalho do técnico de som direto, porém às vezes o filme entra em produção ainda sem saber quem vai editar o som. É impensável que o profissional que vai ser responsável pelo conceito sonoro do filme, vai se autodenominar “projetista de som” ou “diretor de som”, ou seja lá o que for, não participe da preparação da filmagem, ele deveria ser contratado e discutir opções de trabalho com o diretor e com o técnico de som: “olha, aqui acho que vale mais a pena você captar só os ruídos porque a gente vai ter que dublar”, sei lá. Uma cena de ação com capotamento e um diálogo lá no meio: “esse diálogo não vai valer porque tá no meio de um inferno de barulho, mas vale a pena captar todos os ruídos, pense numa captação estereofônica…”. Ele, junto com técnico de som direto, deveria estabelecer as prioridades, os principais procedimentos e definir o método de trabalho para aquela produção. Então em parte, quando o técnico de som já tem mais experiência, ele acaba também já pensando, já tentando se antecipar e fornecer o máximo de material pra edição. Infelizmente na nossa realidade de produção não é uma rotina de trabalho termos o editor de som ou o sound designer presente desde o início do processo, o que é uma pena.

 

AL: É que tem essa relação do editor com o mixador. Por exemplo, se fulano faz um filme e sabe que sicrano vai mixar ele já faz de um jeito, porque ele já sabe como funcionam as coisas e tal. Faz diferença você saber quem vai editar? Você trabalha de uma maneira diferente também?

JG: O trabalho não é diferente, o resultado da captação de som direto não vai variar muito, mas pode apontar aquilo que é a prioridade para aquela produção e para aquele editor. Por isso, é fundamental que o editor de som participe da análise técnica, não obviamente o tempo todo, porque tem coisa ali que é da realização, que vai ser enfadonho, mas pelo menos ter uma reunião: diretor, coordenador de produção e técnico de som, pra discutir os conceitos, as questões centrais, isso seria fundamental.

Existia, na indústria norte-americana, uma figura chamada “diretor de som”. Que era o profissional que respondia por todas as etapas do projeto. Ele não ia captar som, por ventura nem editava o som, mas ele era “o” coordenador do som do filme. Ele conversou com o músico, com o editor de som, com o captador de som, com o diretor e com o produtor executivo pra saber qual o tamanho do orçamento. Era o profissional que realmente respondia pelo som do filme, em termos estéticos, técnicos e orçamentários.

Tem um exemplo no livro do David Yewdall (“The Practical Art of Motion Picture Sound), em que ele questiona essa onda de sound designer, e faz a defesa do antigo profissional denominado diretor de som. Ele cita o exemplo de um filme B, de orçamento baixo, onde o diretor queria que o filme tivesse cara de filme de grande orçamento. Era um filme de ação, com atores tipo Arnold Schwarzenegger, atuação qualquer coisa. E tinha cenas de desembarque, assalto de tropa, rapel, tiro e etc. O papel do diretor de som foi definir junto ao técnico de som direto a prioridade do trabalho de captação de som para aquele filme. A orientação foi genial, pensando em termos de adequação orçamentária, a diretriz passada pelo diretor de som para o técnico de som foi: “olha, eu não quero saber dos diálogos das cenas de ação, mas eu quero a ruidagem – o tanque, o helicóptero, a metralhadora –, isso tem que ter, todos os ruídos têm que ser captados da melhor forma possível.” É genial, porque ele sabia que para reconstruir, de uma forma minimamente interessante, com qualidade, ia ser muito difícil dentro do orçamento que eles tinham. E dublar as falas, seria comparativamente bem mais barato. Então é interessante esse exemplo. Como a coordenação geral do som foi fundamental pra adequar a realidade orçamentária para o tipo de produto que se buscava e orientar o método de trabalho do técnico de som direto. Infelizmente, na nossa realidade, muitas vezes não se sabe quem vai editar o som no início da preparação do filme, ou quando se sabe, não existe o hábito de contratar o profissional para que ele participe de dois ou três dias de reunião de preparação. Mas, com certeza, isso influenciaria positivamente o trabalho de captação.

Eu acho que a experiência com edição realmente modifica o discernimento sobre o som direto. E às vezes até pra você ser um pouco mais condescendente com algumas coisas: “ah, tem ruidinho”, mas tudo bem, isso não é necessariamente um problema. Ou, para alguns técnicos de som, o que é um ponto nevrálgico: som com ligeiras perdas de eixo – o ator se mexe e o microfone não acompanha, ou vira de costas pra câmera. Tem técnico de som que não admite que o som saia de eixo, a voz tem que ser absolutamente uniforme o tempo todo. Eu não tenho tanto problema com isso. Se o ator está aqui e vira de costas pra câmera e fica de frente para uma parede, se ocorrer uma ligeira mudança de timbre porque o microfone perdeu um pouco o eixo voz, mas não foi uma coisa brutal, é aceitável, porque quando você vive isso na vida real você ouve diferente, e que bom, porque isso te dá uma sensação de que aquilo é de verdade. Isso é um exemplo que recupera um pouco aquela ideia do som direto trazer uma vida, ter pertinência, ter pertencimento àquele espaço. Tem limite, óbvio! Mas poder aceitar e entender isso como algo que faz o som direto ter uma coloração especial é muito bacana.

 

HR: E sobre pensar a materialidade do som, escolhas de tipos de microfones pensando timbres em função de usos narrativos específicos.

JG: Na prática do trabalho, a possibilidade de diferentes microfones à disposição do técnico de som direto passa pela capacidade orçamentária da produção. Existe também, o gosto pessoal pela diferente sonoridade das diferentes marcas e modelos de microfones, e esse “gosto” acaba sendo determinante na escolha feita pelos técnicos. Alguns microfones direcionais são mais suscetíveis à reverberação, alguns são mais “brilhantes” – tem um reforço nas frequências médias altas – e por isso, em certas situações, são mais eficientes em captações externas, alguns são mais discriminatórios em relação às fontes que estão fora de eixo, então estas características são levadas em consideração na escolha de um microfone para uma determinada situação. Mas na prática do trabalho, em função dos orçamentos, os técnicos dispõem de um arsenal relativamente limitado para escolher. Uma diferenciação brutal, facilmente perceptível, existe entre a sonoridade obtida com a captação feita por um microfone direcional – aéreo operado por boom – da captação realizada por um microfone de lapela. Essa diferença de sonoridade é claramente percebida por qualquer um. A sonoridade do microfone de lapela, por melhor que ele seja, não é comparável à sonoridade de um microfone “aéreo” direcional, quando consideramos marcas e modelos de qualidade profissional. Tem situações de captação de som direto que só o microfone de lapela é capaz de solucionar, mas a sonoridade do microfone de lapela não consegue traduzir o fenômeno sonoro com a mesma riqueza de detalhes que um microfone aéreo normalmente faz.

Para alguns técnicos, quanto mais destacado o som estiver – presente em primeiríssimo plano – melhor. Alguns editores também vão nesse caminho e estimulam o uso indiscriminado de lapelas. Outros profissionais aceitam um som um pouco menos presente, às vezes carregados, digamos, com pequenas impurezas, mas que tragam a sensação de pertencerem ao espaço do qual emanam. Eu acabo tendendo mais pra o segundo grupo, prefiro optar por uma interferência acústica no espaço de filmagem buscando as condições adequadas para uma boa captação – escolha de locações adequadas, controle dos ruídos externos, tratamento acústico das locações –, para poder utilizar os microfones aéreos. O áudio captado por um microfone aéreo traz mais naturalidade do que o resultado sonoro de uma fala captada com o microfone de lapela. Por melhor que seja o lapela, por melhor posicionado que esteja esse lapela. E o fato é que quando você escolhe um microfone pra captar uma voz você está buscando uma representação do que seria uma escuta. Você está fazendo uma representação do que seria aquele fenômeno acústico acontecendo caso você estivesse ali ao vivo, mas, pra começar, a gente ouve estereofonicamente, e o microfone que a gente usa pra captar a voz é mono. Então já existe uma diferença imensa. E a partir dai, quando a voz é emitida, o som se propaga para todos os lados, porém a maneira como ele se propaga pra cá é diferente da maneira como ele se propaga pra lá. Então, buscar reproduzir isso é sempre uma tentativa, uma representação. Ai quando você usa um microfone de lapela você está trazendo uma impressão ainda menos natural do que aquela que você tem quando está usando um microfone aéreo. Mas de qualquer forma, qualquer uma delas é uma tentativa de reproduzir esse evento acústico que você vivencia quando está em contato direto com ele.

 

HR: Você acha que existem estilos de captação de som. Você consegue definir o seu estilo pessoal?

JG: Eu acho que existem procedimentos diferentes, que conformam métodos de trabalho diferentes. Para cada produção, em função das especificidades de cada trabalho, um método específico deve ser estruturado É claro que existem procedimentos comuns que se repetem e estão presentes em todos os trabalhos. Eu tenho uma tendência a ter uma grande interferência no processo de preparação, na tentativa de obter as melhores condições para a captação, isso significa: escolha de locações, tratamento acústico das locações, discutir a mise-en-scène, pensar em soluções de realização que contemplem a captação do som direto. O que, às vezes, não é muito bem visto, pois dá mais trabalho à produção e à direção. Não sei exatamente como denominar, eu diria que tendo a uma captação mais “acústica” ou simplificada, no sentido de usar a menor quantidade de processamento eletrônico possível, o menor número de microfones possível, buscando a sensação de pertencimento daquele som naquele espaço que é visto na imagem. Só que às vezes a captação da cena é feita num espaço físico muito diferente do espaço diegético, do espaço que vemos na imagem. Então como é que você adéqua? Aí sim vem todo o trabalho do técnico, do esforço produtivo, do orçamento, de tentar tornar aquele espaço onde você está fazendo a captação da imagem e do som acusticamente adequado àquilo que se vê na imagem. A minha tendência é essa, de sempre tratar acusticamente os espaços o máximo possível, às vezes até reduzindo pra um nível inferior do que seria o natural do espaço, para que você tenha o registro um pouco mais “seco”, e que se for necessário, na mixagem, você recoloca aquela reverberação que foi retirada na captação, retirada graças ao tratamento acústico. Agora, de qualquer forma, alguma coisa daquela reverberação vai estar presente e vai ser um indicador para a mixagem de como aquilo deve soar.

 

BM: Não sei se foi o Chris Newman que disse que os técnicos de som se restringem à monitoração com o fone de ouvido, mas que seria interessante ouvir também em caixas de som após o trabalho no set de filmagem, porque é como as pessoas vão ouvir…

JG: É legal também ouvir o som através de monitores confiáveis, porque é bem diferente você ouvir o som aqui (na orelha) através dos fones e ouvir em monitores de estúdio, numa sala acusticamente calibrada. Mas de qualquer forma, o técnico de som direto tem que conseguir avaliar a qualidade do áudio captado através dos fones de ouvido, porque é assim na prática do trabalho e é necessário treino para aprender a discernir a qualidade do som. É fundamental essa capacidade porque, na maioria das vezes, você tem que avaliar a qualidade do som e dizer se valeu ou não valeu, ali, no calor da cena, no finalzinho da tomada. Às vezes, até existe tempo para voltar e reouvir o som da tomada, porém na maioria das vezes não, acabou a tomada, já desmonta tudo e vai para outro plano. Quando existe alguma dúvida, o técnico tem que gritar na hora “não valeu, não valeu, vamos repetir”. Essa veemência é fundamental para que o diretor assuma que tem que fazer de novo, porque às vezes o plano é ótimo para a imagem e para a direção e o diretor não quer fazer de novo. Quando eu tenho qualquer dúvida se o plano de som valeu, eu digo que ele não valeu. O diretor pode ficar irritado na hora, mas na montagem, se ele tiver duas boas tomadas, ele não vai lembrar que aquela tomada que antecedeu a última foi o técnico de som que falou que não tinha valido. E é melhor ter duas que funcionem do que chegar na edição e perceber que não tem nenhuma.

 

AL: E ensaios, você costuma gravar?

JG: Não, a não ser que seja uma coisa muito particular, muito difícil, complicada! Como o trabalho do técnico de som está muito atrelada ao quadro da imagem, os primeiros ensaios eu gosto de acompanhar no set, de ver a cena ao vivo, o movimento dos atores, da câmera, só depois que eu vou ouvir a cena num ensaio mais adiantado. E tem diretores que não ensaiam, essa tendência de manter o frescor da cena então abdicam dos ensaios.


BM: Com relação ao processamento de áudio na captação, especialmente com os limiters

JG: Olha, eu normalmente evito usar processador de áudio. Eu não sou muito bom nisso! Eu me formei com o Nagra, e o Nagra tinha lá “record” e “record no limiter”. Então existia um limitador automático que era fantástico e, obviamente, se o técnico não fosse muito incompetente de estabelecer um nível de gravação estupidamente errado, ele só atuava nos picos mais intensos e você nem percebia a atuação dele. Equalizar os diferentes microfones, aplicar compressão na captação eu só usei em situações muito particulares. O mixer que eu uso tem um limitador automático, você pode definir o nível no qual ele começa a atuar, mas o grau de atuação é automático e é suave.

 

BM: Mas você o utiliza?

JG: Sim, eu trabalho com ele ligado. Normalmente ensaio com o limitador desligado, ou seja, eu ajusto o ganho para não precisar do limitador e, na hora de rodar, ligo o limitador, para o caso do ator se animar um pouquinho. Normalmente quando a cena vai acontecer (é uma regra meio tola) eu fecho um pouquinho o ganho porque na hora da cena o ator se anima e projeta mais a voz, é normal.

 

BM: Que mixer você costuma usar?

JG: Eu uso o “442” ou o “552” que são os mixer portáteis do mesmo fabricante do gravador que eu uso que é o 788.

 

Guga Rocha: Sobre o uso de delay de correção no set, para monitorar microfones espaçados?

JG: Eu uso o delay para o acerto de tempo das pistas no gravador multipista, Guga, quando utilizo os sistemas de microfone sem fio digital. Quando eu trabalho com sistema Lectrosonic da série 400, que é híbrido analógico/digital, então ele tem um delay no processamento de 3,2 milissegundos. Então o que eu faço é atrasar o aéreo, atrasar a pista do direcional. Com esse recurso eu garanto que as pistas estejam na mesma fase elétrica, mas acusticamente sempre vai ter uma diferença.


 

 

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